Todos esses crimes aconteceram nos últimos três meses, aqui nas vizinhanças, e por isso talvez você ainda lembre de ter lido sobre eles. Mas são tantas as histórias parecidas acontecendo no Brasil, todos os dias, que em pouco tempo ninguém mais vai lembrar de Mariane e da sua mãe, de Katia, de Clarice ou das ainda meninas Debora e Paola. Ninguém a não ser suas mães, seus pais, seus filhos, seus irmãos. Esses nunca esquecem. Em um país em que uma mulher é morta a cada duas horas, pela violência da rua ou de casa, é difícil demorar-se muito em cada uma dessas tragédias. Elas se sucedem nas páginas policiais como uma novela macabra: os atores mudam, mas o roteiro permanece o mesmo.
A escritora argentina Selva Almada, que participou da Flip durante a semana que passou, decidiu dar um novo final a três histórias que já haviam sido substituídas, na memória momentosa das notícias, por crimes mais recentes. Não inventou o final mágico que traria de volta à vida Andrea Danne, Maria Luisa Quevedo e Sarita Mundin, todas elas mortas nos anos 1980 em cidades pequenas do interior da Argentina, mas lhes deu o desfecho que estava a seu alcance: arrancou essas mulheres interrompidas do esquecimento, deu sentido a suas histórias, desnaturalizou a violência de que foram vítimas.
No livro Garotas Mortas, lançado há pouco no Brasil, a escritora recorre a arquivos de jornais e entrevistas com familiares para recuperar o contexto desses três crimes. Ficamos sabendo que Andrea foi encontrada morta em sua cama, apunhalada, aos 18 anos. O corpo de María Luisa foi encontrado em um terreno baldio, com o rosto bicado por pássaros. Sarita desapareceu.
Cada uma dessas tragédias poderia ter acontecido com a autora – ou comigo, ou com a minha filha, ou com qualquer mulher que eu conheço. “Uma mulher chegar a algum lugar é uma questão de sorte, de um feminicida não ter atravessado seu caminho”, disse a autora em uma entrevista.
O livro é perturbadoramente bem escrito e obriga o leitor a parar para pensar. Se um tipo de crime como esse não para de crescer no Brasil (e na Argentina), talvez os verdadeiros culpados não sejam apenas o ciúme, o álcool ou o desequilíbrio psicológico. É preciso identificar nos relacionamentos e nas famílias, e na nossa sociedade como um todo, aquilo que tem permitido que tantos homens moldem seu caráter de forma a considerar a morte de uma mulher a única saída possível para relações que não deram certo ou se tornaram inconvenientes. Para começar, poderíamos eliminar do vocabulário policial a hedionda expressão “crime passional”. Paixão não tem nada a ver com isso. Esses crimes têm nome: feminicídio. O assassinato que não escolhe lugar ou circunstância, mas é determinado pelo gênero da vítima.