Filhos homenageando o pai, avô cantando com os netos, pai dividindo o palco com os filhos. 2017 foi o ano em que três nomes seminais da mítica geração que reina na MPB desde os anos 1960 criaram projetos artísticos envolvendo a família.
No disco Caravanas, um dos melhores de 2017, Chico canta pela primeira vez com os netos Clara e Chico Brown. Na parceria com o neto de ouvido absoluto, Massarandupió, a letra de Chico compara a areia da praia baiana onde brincava o bacuri Chico Brown com a areia da ampulheta que marca a passagem do tempo: "Ó mãe, pergunte ao pai/ Quando ele vai soltar a minha mão/ Onde é que o chão acaba/ E principia toda a arrebentação/ Devia o tempo de criança ir se/ Arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal de/ Massarandupió".
Pelo menos outras duas canções do disco remetem à passagem do tempo e à finitude: Tua Cantiga ("E quando o nosso tempo passar/ Quando eu não estiver mais aqui/ Lembra-te, minha nega/ Desta cantiga/ Que fiz pra ti") e Jogo de Bola (do narrador que "Em priscas eras/ um Puskás eras/ A fera das feras da esfera", mas, sem amargura, aplaude ao ver "rolar a pelota nos pés de um moleque").
Idealizado por Bem, um dos oito filhos de Gilberto Gil, o show que celebrou os 40 anos do álbum Refavela, lançado em 1977, passou por Porto Alegre no início de dezembro. No palco, além de convidados como as cantoras Céu e Maíra Freitas, filha de Martinho da Vila, e de Moreno Veloso, filho de Caetano, três gerações da família Gil: o patriarca, os filhos Nara e Bem, a nora e dois netos ainda crianças. Gil aparece apenas no fim do espetáculo, abençoando a releitura de suas canções e enfatizando que aquele não era um show dele, mas para ele: a reverência de jovens músicos a um disco que não envelheceu um segundo nesses 40 anos.
Poucos dias depois, foi a vez de Caetano desembarcar na cidade com os filhos Moreno, Zeca e Tom. Se Refavela era uma homenagem a Gil, o show dos Veloso foi uma celebração da família – da essência compartilhada pelo sangue e pelo convívio, às diferenças que tornam cada elemento único e distinto. Dos quatro, Zeca parecia o menos à vontade no palco, mas foi uma canção sua a mais surpreendente do show, a impactante Todo Homem Precisa de uma Mãe.
A sintonia entre quatro estrelas de brilho próprio – ainda que uma delas seja um gigantesco astro-rei – marcou um espetáculo que celebra pais, mães, irmãos, avós, cidades e tudo mais que completa o sentido da palavra família: história, biografia, legado, finitude.
Composta quando Caetano tinha pouco mais de 30 anos e incluída no show, Oração ao Tempo ajuda a entender o sentido dessas passagens de bastão entre gerações: "Quando eu tiver saído/ Para fora do teu círculo / Tempo, tempo, tempo, tempo/ Não serei nem terás sido/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Ainda assim acredito/ Ser possível reunirmo-nos/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Num outro nível de vínculo/ Tempo, tempo, tempo, tempo". Na arte, a eternidade do espírito, e na família, a permanência da matéria e dos afetos, a nossa redenção e a nossa esperança. Para 2018 e além.