Há quase 40 anos, 39 exatos, começou a polêmica das "patrulhas ideológicas". Em agosto de 1978, Cacá Diegues, em entrevista, usou essa expressão para referir-se àqueles que ficavam controlando a ação dos outros, como patrulhas de polícia. Pela mesma época, fazia sucesso, de Caetano, Odara, que pelas mesmas patrulhas era interpretada como um "desbunde", uma desistência da luta política. Chico não estava no centro dessa bronca, Caetano sim.
Agosto de 2017, Chico lança nas redes Tua Cantiga, a primeira canção do novo CD, Caravanas, em que a voz que canta, o personagem ali a expressar-se, se diz capaz de largar mulher e filhos para ficar com ela, aquela que pode chamá-lo a qualquer momento. Com a mesma combinação de rapidez e truculência que temos visto, Chico, ele mesmo (não a voz de sua canção), é tachado de machista irremissível. Caetano vem à boca do palco imaginário das mesmas redes para dizer que neste afoxé lento Chico é o mesmo gênio de outros tempos. Não entra na polêmica, burra como quase sempre tem sido.
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Tua Cantiga é outra parceria de Chico com Cristóvão Bastos, que em 1987, 30 anos atrás, tinha rendido a excelsa maravilha de Todo o Sentimento, exatamente, aquela do tempo da delicadeza, aquela que ainda permitia a hipótese de um reencontro, em outro momento: "Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei como encantado / Ao lado teu".
Mas agora, três décadas mais velho, o cancionista não vê mais esse futuro por diante: "Quando eu não estiver mais aqui / Lembra-te, minha nega / Desta cantiga / Que eu fiz pra ti".
O Chico deste 2017 está lançando um disco memorável, mais uma joia na coroa que vem oferecendo aos ouvintes do português há mais de 50 anos (Pedro Pedreiro foi composta em 1965). Nunca como agora suas personagens femininas são evanescentes, inefáveis, um sopro: a terceira canção do novo álbum se chama A Moça do Sonho (com Edu Lobo), que foi vista à contraluz e já passou.
O tempo passa mais vezes aqui. Passa vigoroso mas em registro imperceptível: quando deu pra ver, já era. Nunca como agora o cancionista Chico Buarque é irmão do romancista Chico Buarque. Desde Estorvo, de 1992, o escritor já mostrava esta outra face do seu talento narrativo: em lugar de personagens palpáveis, mesmo quando esquivos (Carolina talvez seja o paradigma), personagens e situações narrativas em que não raro o leitor sai sem conseguir decidir se acabou de presenciar um sonho mau ou uma tristeza por assim dizer real.
O disco tem ao menos três canções de alta potência. Uma é Jogo de Bola, um samba difícil, que vai se desenrolando numa forte tensão entre as frases melódicas e as frases de palavras, umas fugindo das outras ou se reencontrando onde e quando já nem se esperava mais.
É mais uma canção cuja matéria-prima é a experiência viva do futebol, de um lado, e é também a mitologia do futebol: "Em priscas eras / Quando Púskas eras", por exemplo. Também no fute amigo o tempo passou logo ali, velha Carolina.
Parceria com netos Chico Brown e Clara Buarque
Outra é Massarandupió (nome de uma praia baiana, diz o google), que traz a graça sublime e complicada de ser uma parceria entre Chico e seu neto Chico Brown, sim, filho do Carlinhos. Que estranha emoção nos invade ao testemunhar essa talvez passagem de bastão, com uma geração falhada, numa canção que fala da meninice? "Devia o tempo de criança ir se / Arrastando até Escoar, pó a pó”.
(Ainda tem regravação de Dueto, canção lá do tempo das patrulhas ideológicas, 1979, agora com a voz feminina sendo feita por outra neta, Clara, e a letra ganhando uma nova estrofezinha, para dizer que o amor consta, além de nos astros e búzios, no whatsapp, no facebook, no tinder...)
E tudo converge na portentosa As Caravanas. Mescla de samba abolerado com momentos de funk, a melodia inamistosa vocaliza "a gente ordeira e virtuosa" que não aguenta ver o pessoal do subúrbio chegar à mesma praia dela. Essa caravana de "suburbanos tipo muçulmanos", na mão do Chico, emparelha os pobres de muitas partes do mundo, que a gente "de bem" gostaria que fosse de volta "pra favela, pra Benguela, pra Guiné”, numa caravana meio igual ao navionegreiro, o tumbeiro de outro dia.
É isto: empatia como sempre, canções lindas como tantas outras, com um sentido de urgência implodida no encontro com os netos, tudo disposto ao assobio nosso de qualquer dia.