Nada mais distante da ideia de verão do que um inferninho enfumaçado, frequentado por homens de terno e mulheres de soirée, onde o sol jamais penetra, e a trilha sonora fala de amores perdidos, traições e fossa. Muita gente, porém, decidiu passar o veraneio de 2016 assim, mergulhado na penumbra das boates cariocas dos anos 50, cenário dominante do livro A Noite do Meu Bem, de Ruy Castro. Depois de radiografar a solar Bossa Nova, o biógrafo de Nelson Rodrigues e Carmen Miranda investiga em seu livro mais recente as origens do noturno e embriagado samba-canção, gênero musical que muita gente da minha geração costuma associar ao gosto musical dos pais – ou seja, algo quase tão distante de nós quanto as Guerras Púnicas.
Cantoras como Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, musas da depressão como Dolores Duran, gogós de ouro como Dick Farney nos convidam a imaginar um tempo em que as letras contavam histórias complexas, e os arranjos das músicas que faziam sucesso no rádio eram tratados como peças exclusivas e não como mais uma salsicha na linha de produção dos sucessos em série.
Na minha casa, os clássicos de Ari Barroso, Noel Rosa, Pixinguinha e Lamartine Babo entravam não pelo rádio, que no início dos anos 70 já não tocava esse tipo de música há muito tempo, mas pela coleção de discos Música Popular Brasileira, da Abril Cultural, que era vendida nas bancas de jornal e incluía um fascículo com fotos e textos sobre o compositor em destaque na quinzena.
Graças a essa coleção, aos oito anos eu já sabia de cor a letra de músicas como Touradas em Madrid e Conversa de Butiquim – que eu achava divertidas, muito antes de entender exatamente do que se tratavam. Naquela época, meu pai já não escutava os velhos bolachões em 78 RPM que guardava em um depósito empoeirado junto com a coleção completa das revistas Placar. Aqueles fascículos da Abril Cultural cumpriam, portanto, a dupla função de reaproximá-lo da própria juventude e apresentar, a mim e aos meus irmãos, as músicas e artistas que haviam formado seu gosto e sua sensibilidade duas décadas antes.
Durante muito tempo, lamentei que essa coleção tivesse se perdido em algum momento. Seria bom rever os fascículos, reler os textos, reencontrar as fotos que me apresentaram tantos compositores – Chico Buarque e Caetano Veloso, ainda garotos e já clássicos, inclusive. Hoje, é possível escutar quase todas aquelas músicas nos serviços de streaming, esse baú inesgotável de preciosidades (mas não só...) que custa menos do que um CD por mês. O recurso das playlists permite que se monte, em minutos, uma coleção particular de canções muito maior do que toda a coleção da Abril Cultural – e isso é uma das grandes vantagens da tecnologia. Mas a ausência de discos que possam ser manuseados, investigados, colecionados e compartilhados entre duas ou mais gerações talvez sacrifique a troca de experiências.
O risco é que o passado recente, não visitado, torne-se para sempre tão distante quanto as Guerras Púnicas.