Eu quero falar de outro aborto, um aborto que deveria ser criminalizado, um aborto em vida.
Os homens seguem abortando impunemente. Seguem abortando e não são presos.
Não somente fetos, mas crianças graúdas, trajetórias inteiras.
Abandonam famílias como se fossem nada, viram as costas para casas como se fossem ninharias.
No ano passado, dos 2,5 milhões de bebês nascidos no Brasil, 172,2 mil têm pais ausentes — um acréscimo de 5% em relação ao registrado em 2022, de 162,8 mil.
Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) e se referem a certidões de nascimento sem nome de pai, só com o nome da mãe.
São milhares de registros sem indicar um suposto pai ou sem reconhecimento judicial de paternidade.
A maior proporção de pais ausentes foi registrada no Norte do país — 10% de pais ausentes do total de nascimentos da região, ou 29.323 deles —, seguida do Nordeste — 8% do total, ou 52.352.
Já o Sudeste teve a maior quantidade em números absolutos, 57.602, o que corresponde a 6% do total de nascidos, mesma porcentagem do Centro-Oeste.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), das 34,4 milhões de mulheres responsáveis pelo lar, 32% são solteiras com filho.
As estatísticas representam homens sem responsabilidade alguma, que engravidam e somem, que engravidam e fazem de conta que não possuem nenhum dever com a existência que geraram.
Negam-se a ter qualquer semelhança física com o rebento, a construir qualquer herança emocional. Muito além da recusa do DNA, desprezam a ternura, o contato, o convívio, a pensão, a tutela, o cuidado.
Acreditam que o filho é exclusivamente da mulher, que é um problema dela.
Não comparecem aos aniversários, não surgem na escola, não acompanham o passo a passo da formação. Sombras do passado desprovidas da carne do futuro, descoladas do brilho da pele.
Desaparecem na ingratidão, criando culpa pela ausência, cavando um sentimento de rejeição pela cadeira vaga à mesa.
Entendem que filhos são dívidas, são gastos, são perda de tempo.
Sequer se mostram capazes de provocar saudade. Apenas fabricam sinas e traumas. São bichos egoístas, ensimesmados, senhores de relacionamentos dependentes e tóxicos, feitos para maldizer.
Não se arrependem porque não possuem um coração, um órgão vital para o apego.
Aproveitam o usufruto, nunca se comprometendo com o fruto.
Juram que o filho é do envolvimento, não deles. Confiam que ofereceram caprichosamente um filho de presente à sua companhia, e jamais são presentes, e jamais se fazem presentes. Fingem que realizam um desejo alheio, mas na realidade são eles que insistem em manter relações sem proteção.
Assim, pais reincidentes cumprem infinitos ciclos de omissão, casam-se de novo para ter novos filhos, que serão abandonados quando o romance acabar.
E as mães inventam pais para os filhos, inventam histórias de amor para os filhos, ainda se veem obrigadas a mentir para que a verdade não doa fundo.
Escrevem cartas simulando ser progenitores que se importam com eles, encenam telefonemas nas datas festivas, dão desculpas para a falta de notícias.
Porque sempre será incompreensível tamanha indiferença a um nascimento.