Eu sei qual foi o momento em que a família deixou de jejuar na Quaresma, deixou de não comer carne na Sexta-Feira Santa, deixou de se importar com a simplicidade da Páscoa, de pintar ovinhos em casa, com recheio de amendoim.
Eu sei quando ela cedeu aos encantos de ovos gigantes com brinquedos dentro, aceitando as encomendas dos filhos por determinada marca de chocolate, sem mistério, sem nenhuma pegadinha de coelho pelos corredores, a fim de despertar a fé das crianças.
Eu sei quando abandonou o tradicional almoço no lar e procurou a rapidez do restaurante a quilo.
Quando se desinteressou por completo da conversa olhando nos olhos.
Quando começou a comprar comida congelada e economizar nos talheres.
Quando abdicou do pãozinho da padaria ao entardecer.
Quando fez questão de não mais conhecer os vizinhos.
Quando parou de cumprimentar as pessoas na rua.
Quando as saídas aos shoppings tornaram-se mais frequentes do que as idas às praças.
Quando abriu mão de lavar o próprio carro.
Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente, a ponto de só restar a noite para estar junto.
Quando a vassoura sumiu do seu posto atrás da porta.
Quando o avental desapareceu do seu gancho.
Quando cultivar uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai desmontou a sua oficina de marcenaria na garagem.
Quando a tabuleta de “bem-vindo” acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da soleira.
Quando o espanador e o cortador de grama foram aposentados.
Quando substituímos as raízes do jardim por algumas samambaias aéreas.
Eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que paramos de vestir o botijão de gás.
Aquele ato mudou a nossa mentalidade.
Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência, pela ordem doméstica. Mostrava-se uma atenção com a rotina.
Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência, pela ordem doméstica. Mostrava-se uma atenção com a rotina. Um capricho com as gavetas, e despensas, e fundos, e cantos, e quinas.
Tudo era forrado de palha e gentileza como uma cesta de Páscoa. Morávamos protegidos pelo celofane da educação.
Não permitíamos a nudez do gás no coração de azulejos da cozinha.
Correspondia a um ultraje, a uma falta de compromisso, a uma ausência de asseio. Até ele precisava ter modos.
Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, o veículo na garagem.
Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se cogitava trocar nada.
Com as sobras das rendas das cortinas, costurávamos uma proteção para o botijão. Gostava de pensar que ele usava poncho como nós.
Vestir o botijão revelava o quanto nos preocupávamos com o desnecessário, o quanto dividíamos o sofá e a existência para assistir a um filme, o quanto desfrutávamos de tempo para amar.