No livro A Cabana, best-seller do canadense William P. Young, que já vendeu mais de 22 milhões de exemplares, Deus é uma mulher negra, comovida e atenciosa.
Na versão cinematográfica, a entidade divina foi interpretada por Octavia Spencer, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2012, por Histórias Cruzadas.
No enredo, a convite de Deus, Mack retorna ao cenário do assassinato de sua filha para tentar vencer uma grave depressão e entender quais os estranhos propósitos do seu destino.
Eu me lembrei da caracterização feminina e maternal do Papai do Céu do livro e do filme de enorme sucesso quando soube do episódio em Nova Prata.
A nossa cidade gaúcha apresentou, neste ano, como encarnação do folclórico Papai Noel, a servidora pública Lisiane Vieira, 41 anos, que trabalha há três anos na Secretaria de Obras. Era, portanto, uma Mamãe Noel negra na Praça da Bandeira. Um vento de mudança no biotipo natalino do senhor grisalho e de óculos, com aquela risada forçada de “hohoho”.
Aquilo que poderia ser um elogio à diversidade e um aconchego alegre terminou na Delegacia de Polícia.
Mamãe Noel não recebeu nenhuma carta das crianças, nenhum beijo estalado, nenhum pedido de presente no ouvido. Paradoxalmente, foi ela quem teve que escrever a sua tristeza num boletim de ocorrência.
Lisiane Vieira não suportou o desprezo do público no primeiro dia da ação de Natal, na sexta-feira passada (2), e abandonou o papel.
Funcionária exemplar, uma avó jovem e animada, com o carinho do colo e do olhar, sofreu um descabido boicote.
Segundo relatos, as pessoas preferiam tirar fotografia com a árvore decorada, ou com as renas, a tirar com ela. Tudo para desmerecer a representante local.
A fila se dispersava quando chegava a vez de os pais com os seus filhos abraçarem a boa velhinha.
Na celebração do nascimento de Jesus, crucificamo-lo novamente nos pequenos gestos da rotina.
Afinal, a ideia do convite tinha como objetivo homenagear uma figura comunitária, criar uma identificação entre os moradores trazendo alguém acessível, que pudesse ser reconhecida debaixo do traje vermelho como a vizinha da padaria, da igreja, do mercado.
Havia uma intenção de priorizar a alma em detrimento dos padrões comerciais, de valorizar o amor fraternal, em que todos são mensageiros da cordialidade.
O que passou pela cabeça dos visitantes do pórtico da prefeitura para exigir a branquitude e a virilidade do perfil de Noel? Com certeza, não passou nada pelo coração deles.
Fizeram um desserviço a Nova Prata. Por que colocar um município incrível, de fortes laços sociais, de completa miscigenação entre as culturas indígena, africana, polonesa, alemã, árabe, portuguesa e espanhola, no noticiário nacional como um exemplo de discriminação?
Conheço bem a comarca, desde quando meu irmão atuou como promotor de Justiça.
O fato me cortou a esperança pelo racismo evidente, ainda que não tenha provas ou que as imagens da câmera se encontrem sem som. Já basta a voz de Lisiane:
“A reação das pessoas, quando elas entravam e me viam ali, era de espanto. Tiveram pais que olharam para as crianças e disseram: quer bater a foto na árvore? E nem cogitaram a possibilidade de chegar perto de mim. Tinham pais que olhavam e diziam ‘a Mamãe Noel é negra, nem vamos bater fotoʼ”.
Mamãe Noel aguarda seu presente de Natal. Deus está vendo.