Não posso ver uma camisa estendida na cama, ou uma calça perdida no sofá, ou mesmo um casaco no espaldar da cadeira, que eu guardo. Dobro e guardo. Sou o catador da família. Um robozinho girando seu radar pelos espaços à cata de um extravio.
Dificilmente ando em casa com as mãos livres. Estou sempre carregando algo. Se as dobradiças dos armários quebram, a culpa é toda minha, de tanto que eu abro portas.
Nem perco tempo reclamando da confusão.
Meus braços têm formato de cabides. Há em meu corpo as operações de agitação, enxágue e centrifugação.
Eu acondiciono as roupas dos filhos e da esposa. Só me aquieto quando não vejo nada em cima de nada — superfícies lisas, reproduções de ambientes para visitação da Casa Cor. Até as almofadas obedecem a uma ordem de tamanho no sofá.
Gosto de tudo no lugar. No lugar que eu costumo achar o certo.
O certo para mim, não para eles. O que significa que eles jamais localizam as próprias peças na hora do desespero de sair.
Chamar-me de neurótico não condiz com a verdade. Talvez apenas parcialmente. Na atitude, existe a atração pela dominação.
O arrumador de roupas não exerce essa função por capricho, para ter o lar nos trinques, para educar os outros, mas para obter influência, para ganhar autoridade perante a família, para manipular vantagens.
Eu me torno extremamente poderoso.
Os filhos e a esposa se veem obrigados a me procurar para perguntar onde está alguma peça. Nunca me abandonam. Sempre me solicitam. Eu me sinto importante, amado, idolatrado, um exemplo de eficiência.
Chegam a me telefonar do trabalho para questionar se eu sei onde está determinado cinto, determinado par de meias.
Claro que eu sei. Ainda ganho pontos na generosidade por parar as minhas atividades e me preocupar com a vida dos outros.
Respondo com orgulho, de bate-pronto: “na segunda gaveta à esquerda”, ou “secando no varal”.
Eu virei a memória fotográfica deles, o mapa da pressa, o dono do balcão dos achados e perdidos, o marceneiro da tábua da salvação, a atenção suprema, o olhar vigilante e onisciente por dentro dos armários.
O que eu faço é nada mais, nada menos do que um golpe. Uma tirania astuta na democracia doméstica.
Finjo que o ambiente está um caos, quando é natural a movimentação e a troca de vestuário com a mudança climática. Todos passam a depender de mim. Como me antecipo, a turma sempre parece bagunçada, e fortaleço a minha fama de único organizado do recinto.
Eles achariam com facilidade o que procuram se eu não vivesse mexendo em suas coisas. Fico adulterando o local da desova e forçando esquecimentos.
Ainda conquisto o bônus da gratidão ao recolher objetos dos bolsos no cesto das roupas sujas.
Surjo na sala ostentando uma carteira de identidade, um cartão de crédito, um fone de ouvido, e digo:
— Resgatei antes de pôr na máquina de lavar. Deveriam me agradecer.
O que seriam sem mim? Sem dúvida, menos loucos e muito melhores.