Na casa da minha mãe, ao entrar na cozinha, vislumbrará cascas de laranja nos pregos das panelas. Um santuário de espirais e serpentinas.
São como heras que crescem das mãos maternas e cobrem as paredes.
Minha mãe tem o costume de descascar uma laranja no despontar do sol. É o seu gesto fundador quando acorda. Não com qualquer faca, mas com o canivete que herdou de sua mãe. Ela corta a fruta rente aos dedos, arredondando o sumo branco.
As cascas caem inteiras na mesa. Não são fatiadas. É como se uma caixinha fosse retirada de uma caixinha. Similar ao movimento de uma matriosca, o brinquedo russo – bonecas de madeira colocadas umas nas outras, que se abrem da maior até a menor.
Não parece que ela rompe uma superfície, mas apenas retira magicamente o conteúdo da laranja de seu invólucro.
É o jeito que ela tem de matar a saudade da minha avó. Mata toda manhã um pouco da saudade. Só morremos quando a saudade morre totalmente conosco. Quando a saudade termina dentro de nós.
Com seus oitenta e três anos, jamais faltou um dia ao seu compromisso com a ausência, ao encontro com o ventre das suas lembranças, com a genitora da sua delicadeza, com a sua falecida predileta.
Ela diz que reza o terço nas cascas de laranja. Encontra os nós e as pedras na textura, para dedilhar a Ave-Maria e o Pai-Nosso. A cada amanhecer, ela fabrica o seu rosário manualmente, depois o estende no alto dos azulejos.
Tal como velas acendidas religiosamente nas janelas, onde a luz entra e já encontra uma claridade habitada.
Sabemos o quanto o nosso sexto sentido está no olfato.
Ela não tem nenhum retrato da sua mãe pelos cômodos e estantes. Não precisa, pois vive reconstituindo o cheiro dela: o perfume dos temperos (alecrim, manjerona, sálvia), o suor do avental, o vento gelado da cozinha do pampa que faz você aquecer as mãos sentando em cima delas.
Ela continua repartindo a primeira fruta do dia com a sua mãe. Oferecendo gomos de gratidão. Porque gratidão mesmo não se demonstra somente quando a pessoa está presente. Você segue falando bem dela pelas costas.
Mesmo sozinha, minha mãe nunca está sozinha. Nunca toma café sozinha. Nunca cozinha sozinha. Amar alguém é nunca mais ser sozinho na vida.
Por debaixo das cascas da aparência, das cascas dos costumes, das cascas dos corpos, das cascas do tempo, duas almas conversam animadamente no interior dos pensamentos.
Enquanto a minha mãe come a laranja, vai segurando as sementes no punho esquerdo. Com firmeza. Com pressão. Com força. Não duvide de que tenha a mão de sua mãe na semente.