A cozinha é o eixo do mundo para o gaúcho. Se precisasse escolher um único aposento de toda a casa para ficar trancado no Apocalipse, seria a cozinha. É onde conversa relaxado, prepara o mate, toma o café da manhã com a família, recebe os amigos mais assíduos para confidências.
Tanto que ele só dá por encerrada a faxina quando baixa o tampo de vidro do fogão, coloca uma toalhinha de crochê e a chaleira por cima. Significa que a residência está limpa. É o último ato da organização.
O fogão é uma segunda mesa, a chaleira é a nossa cristaleira.
Na última semana, meu melhor amigo me visitou para preparar um risoto à minha família. Ele assumiu a cozinha. Não há prova maior de amizade, mais do que emprestar dinheiro, mais do que emprestar carro. Deixar que alguém mexa naquele ambiente íntimo é total confiança, porque vai alterar o esconderijo de cada pertence, de escoador a pegadores e colheres de pau.
Em certo momento da sua movimentação com as panelas, ele me perguntou onde estava o chinois — pronunciou “chinoá”. Dei de ombros. Minha esposa tampouco conhecia o que era aquilo. Zé não desistiu e procurou na terceira gaveta. Todo mundo tem uma gaveta em que coloca tudo o que é não talher. Lá, encontrou o funil de metal. Eu não tinha ideia de como a estranha peça cônica chegou até ali. Se veio como presente de casamento ou já se encontrava no lugar como herança do antigo morador. Não nos lembrávamos de ter comprado.
Recordamos os itens mais frequentes de nossa rotina — o ralador de queijo, a espátula, o abridor de lata, o saca-rolhas, o cortador de pizza, o cutelo —, mas desconhecemos a existência de metade dos acessórios domésticos disponíveis em nossos armários — o almofariz, a chaira, o mandolim, o zester, o descaroçador. Cada um tem uma função, um propósito para facilitar a sua vida. Você pode possuir um utensílio e jurar que nunca o viu.
Nosso coração é como essa gaveta de mistérios, cheia de emoções que não usamos. Nem sabemos da sua presença. Em nossa alma, habitam finalidades e forças inexploradas. Desprezamos grande parte de nossos dons pela comodidade de repetir o básico, pelo medo da criatividade, pelo receio de errar ao tentar novas receitas de comportamento e de felicidade.
Quantas virtudes seguem intocadas dentro de nós pela pressa ou pela indiferença doméstica?
Recorremos aos grandes sentimentos como o Respeito, e esquecemos que há a Decência e a Honra depositadas em seu fundo, instrumentos importantes para a preservação da nossa coerência. São princípios que deveríamos empregar com mais frequência para garantir a fidelidade aos nossos sonhos.
Você tem utilizado a sua doçura, o fouet do seu espírito, para fazer a clara em neve?
Uma visita me apresentou a minha própria casa, devolveu o potencial de meu lugar e de minha personalidade, despertou a gratidão pelo patrimônio que já possuo, mostrou a exuberância das ferramentas que estão à minha disposição.
Cotidiano
Opinião
A gavetinha dos utensílios
Quantas virtudes seguem intocadas dentro de nós pela pressa ou pela indiferença doméstica?
Fabrício Carpinejar
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