Um doador de órgãos pode salvar oito vidas. Transforma o seu adeus em renascimento de oito gaúchos que se encontram na fila, entre a esperança e a angústia, por uma segunda chance de repor a sua saúde.
O corpo humano é um sudário de milagres, com reaproveitamento de rins, fígado, coração, pâncreas, pulmões, córneas, pele, ossos, válvulas cardíacas, cartilagem, medula óssea e sangue de cordão umbilical.
O que me assusta é que estamos experimentando o desprestígio da doação no Rio Grande do Sul. Nossos números vêm despencando. De 243 doações em 2019, passamos para 182 doações em 2020, e descemos para 96 doações em 2021. Se prosseguirmos no ritmo do medo e não adotarmos uma nova postura, caminharemos rumo a uma estatística parca de algumas dezenas.
Enquanto as autorizações caem, a lista de necessitados somente aumenta. De acordo com os dados da Secretaria de Saúde do Estado, 1311 pessoas aguardam um rim, 958 pessoas aguardam uma córnea, 151 pessoas aguardam um fígado, 13 pessoas aguardam um coração.
Uma das minhas suposições para o retrocesso é a falácia popular, superando as restrições dos cânones religiosos.
Acredito que a superstição de que o falecido continuará no corpo do paciente não ajuda em nada na campanha de incentivo. As famílias ficam ainda mais assustadas com a crendice da permanência do seu ente querido em outro corpo.
Novelas e filmes reforçam a romantização de um coração doado. Como se o coração carregasse a memória do morto e transferisse o que ele sentia para o beneficiado do transplante.
Se fosse assim, enviuvados sofreriam o baque de uma ressurreição e se veriam obrigados a se aproximar dos sobreviventes como extensões de seus amores.
Tal teoria não colabora com o luto e agrava a obsessão de todos os que perderam alguém em procurar indícios de intimidade nos encontros futuros com os transplantados.
Forma-se o medo místico de que o transplantado assumirá os antecedentes de seu doador ou de que este, dependendo de como viveu e de qual o seu caráter, influenciará as decisões do transplantado.
É um eugenismo pós-morte, corrente de pensamento que inspirou a segregação e o extermínio nazistas. Ou seja, transmite-se a ideia de controlar as qualidades genéticas e biográficas de quem dá ou recebe.
Não seriam aceitos órgãos de um assassino ou não seriam repassados órgãos a um assaltante. Haveria uma necessidade de entender para onde vai, de onde parte, antes de firmar a transferência.
Ideologizamos a doação e negamos a ciência.
Medicina não é poltergeist. O doador não vai prosseguir no transplantado nem substituir a sua existência. São apenas órgãos, não são fantasmas. Não ocorre uma migração de almas.
Os preconceitos letais se valem de distorções. Quem está à espera da sobrevivência não tem tempo a seu favor para desfazer mal-entendidos. No pulso, diferentemente de nós, não carrega um relógio, e sim um cronômetro, numa galopante contagem regressiva. É capaz de morrer pela falta generalizada de informação e de objetividade.
A doação não depende de sensibilidade, ou de gratidão à vida, ou de generosidade. Decorre da cidadania mais autêntica e despojada que existe, de ser compatível com a coletividade, de ser útil para a sociedade, de ajudar não importa a quem.