A maturidade chega quando você não quer mais deixar marcas nos móveis. Já bastam as cicatrizes e feridas fechadas dos amores e das amizades.
Você tem um cuidado com o lugar onde coloca o cálice, ou o prato, ou a memória. Sua casa tornou-se um patrimônio tombado pela saudade. Não tem mais como ser derrubada. Você não mora mais em uma residência provisória, aquietou-se dos caminhões de mudança. Não mais consulta classificados e muito menos telefona para imobiliárias para seguir indicações dos adesivos nas janelas. Definiu a sua posição geográfica e emocional no mundo – é aí onde vai passar o resto da vida. Não pretende mudar de cidade, as aventuras são todas com passagem de volta.
Passa a ter um maior capricho com sua mesa, sua escrivaninha, suas cadeiras, seu sofá, mobiliou o seu espaço com a sua personalidade. O toca-discos, a cristaleira, a poltrona, o abajur, cada detalhe traz um acontecimento decisivo por trás. Guarda onde comprou, por que comprou, como foi a estreia, o motivo de estar naquele canto e não noutro.
Quadros formam uma narrativa biográfica, costurando seus romances e afeições. Pinturas a óleo dividem vizinhança com lembranças dos filhos.
Trocar um pertence de lugar é alterar seus sentimentos.
Seu primeiro imóvel foi improvisado juntando presentes e doações; seu segundo imóvel foi montado com ofertas; esse definitivo foi decorado a partir do que você deu para si mesmo, escolheu para si mesmo, numa auto-herança.
E já não permite que uma visita fique desamparada de um porta-copos. A conversa sofre com a vigilância. Segue atrás dela com as bolachas para prevenir os círculos na madeira. Tem compaixão pelos riscos e manchas. Evita danos na superfície, pois já teve muitos arranhões no fundo da alma.
Arma proteções; o prato leva o sousplat, os vasos e os porta-retratos são postos em cima das toalhinhas de crochê, o filtro de água recebe capa.
Envelhecer é vestir um por um dos objetos. É criar pele para o toque. É humanizar o tato. Você vai inventando escudos para os seus leais e silenciosos companheiros do tempo.
Óculos não permanecem longe do estojo, lápis não se distanciam do pote. Nada sai do seu ninho.
Ao explicar a contumaz mania aos conhecidos e fugir de ser enquadrado no Transtorno Obsessivo Compulsivo, dirá que faz isso para não perder horas procurando as suas coisas. Mas a verdade é que já desenhou o seu mapa de tesouros. Sabe o que quer, sabe do que gosta. Decidiu-se pela paz.
Estabelece subcategorias em sua organização. Não vive mais genericamente. As especificidades aumentam. Não existe mais a colher, mas colherzinhas para café, para chá, para sobremesas, para sorvete.
Há várias caixinhas pelos armários: de remédios, de linha e costura, de ferramentas, de joias, de relógios. Sua nova ordem é feita de caixas, separadas por temas. O frete é para dentro. Você não mais espalha suas necessidades avulsas pelas gavetas como na juventude. Não confia mais no acaso, encontrou-se com o seu destino.
Nenhuma parte do piso fica sem tapetes. Quanto mais idade, mais tapetinhos pela residência. Antes só se interessava em cobrir os grandes espaços, agora também se preocupa com os pequenos. Qualquer corredor tem uma estampa no chão. Os pés pisam em nuvens de algodão e fibra sintética. Se já beira os oitenta anos, certamente se valerá dos persas, um modo de pintar os seus caminhos interiores.
A abundância de vida vai produzindo apegos. Você é uma fábrica incessante de histórias. Com medo de esquecer algo importante, transfere a memória para tudo o que tem. São pen drives do seu espírito.