Não sei se isso acontece com você. Mas eu tenho, como um bom quarentão, dificuldade de fixar o nome dos outros. Ou me recordo do nome, ou do rosto, não mais dos dois juntos. E nem é uma sequela da covid, porque não contraí a terrível moléstia.
Enfrento o constrangimento de ganhar tempo conversando com a pessoa até surgir alguma iluminação a respeito de onde a conheço.
Odeio quando alguém joga na minha cara que eu não o reconheci – é falta de educação fazer flagrantes da amnésia alheia. Deixe o vivente quieto no seu esquecimento.
Se não anoto o nome do contato na agenda do celular, nunca localizo a figura, ela fica boiando no cemitério de prefixos.
Nem o número telefônico de minha esposa, ou dos meus filhos, ou dos meus pais, eu decorei. Tentei fixar, mas confundo um com o outro. Sou Dr. Jekyll fazendo Frankenstein. Acabei de confundir o livro do escocês Robert Louis Stevenson com o da inglesa Mary Shelley.
Minha memória encurtou como um jeans de tanto frequentar a máquina de lavar. Deito-me na cama para fechar o zíper. É que estou tão gordo de recordações, de vida vivida, que nada mais serve em mim.
Uso o recurso de mímicas e risadas para compensar as lacunas e os lapsos nos encontros com conhecidos e aparentar desembaraço e simpatia.
Mas me dei conta de algo estarrecedor e misterioso. Recordo-me do telefone antigo da minha residência quando pequeno: 341162. Ou do trabalho de minha mãe, 324646, ao qual eu precisava ligar se acontecesse algo de urgente comigo ou com os meus irmãos.
Não me lembro deles porque ambos apresentam apenas seis dígitos, diferentemente dos oito dígitos da atualidade, mas porque eu gravava tudo na infância com uma maior facilidade, quando a minha massa cinzenta se mostrava mais colorida e disponível, mais vazia e menos concorrida de preocupações.
Sou capaz de reconstituir a chamada da sala de aula da primeira série do Ensino Fundamental da Escola Estadual Imperatriz Leopoldina, por ordem alfabética, com o nome e o sobrenome dos meus colegas. Eu ocupava o 11º lugar da lista.
Não sofro de nenhum balbucio, de nenhuma vacilação. As palavras sobem da garganta com a altivez de certezas exatas.
As evocações dos meus períodos de formação são as menos adulteradas pela minha experiência. Posso embaralhar as refeições de ontem, porém detalhar o que comia na merenda escolar toda quinta-feira: sagu com creme, numa vasilha azul e com colher de metal.
Talvez tenham sido momentos de emoção à flor da pele, em que não escolhia o que viver como hoje. Meus hormônios e neurotransmissores assinalavam que tudo era novo e importante, ofereciam tratamento especial para essas reminiscências, antecipando saudades, sublinhando os detalhes.
Alguém, pelo menos, dentro de mim, ainda tem uma memória intacta. Devo confiar mais no menino que fui. Não posso jamais esquecer a minha criança interior.