Eu nasci em 1972. Porto Alegre nasceu em 1772. Eu regulo a minha idade pela cidade. Como se fosse uma irmã mais velha.
Cidade, quando amamos, nunca é pai ou mãe, mas irmã. Porque entende a nossa loucura, aguenta as nossas excentricidades, perdoa os nossos excessos e jamais nos põe de castigo.
Há uma cumplicidade de segredos que somente dois irmãos são capazes de manter. Ambos jamais contam o que o outro fez.
Porto Alegre já me viu de tudo o que é jeito, e minha família não conhece nem metade da história.
Tantos bares, tantas madrugadas viradas, tantos passeios, tantas amizades: cultivamos o silêncio em leal acordo.
O maior ciúme que a minha esposa sente por mim não é por nenhuma pessoa, mas por Porto Alegre. Eu amo desesperadamente Porto Alegre.
Ela não vai confessar as pontadas de possessividade, porém vejo o quanto me estranha pela intimidade que guardo com a cidade. Uma intimidade que ela talvez não suspeite.
Eu me torno impossivelmente vivo quando atravesso o calçadão da Rua da Praia, com aquele rugido da multidão ao lado.
Não há como explicar para a mineira Beatriz o que é receber o vento na garupa nas docas do Guaíba, ou a sensação de pertencimento ao carregar um chimarrão pela Redenção, ou o alvoroço do batimento de ir caminhando até o estádio do meu time com radinho de pilha nos ouvidos, ou a vontade de chorar com o sol explodindo a luz nas águas, com rojões e rojões naturais (é o único crepúsculo com barulho no mundo).
Porto Alegre já me viu de tudo o que é jeito, e minha família não conhece nem metade da história
FABRÍCIO CARPINEJAR
Como descrever o que se passa por dentro de mim pelos obstáculos da boêmia, ao me desviar de noite das cadeiras e mesas na calçada na Cidade Baixa? Será que conheço alguém?
Sei onde tem ladeira, onde tem rua sem saída, onde tem quebra-mola, onde tem radar, onde tem vista para o rio, onde tem quero-quero, onde tem velhinhos jogando dama com tampinhas, onde tem ciclovia, onde tem casais namorando, onde tem cinema, onde tem teatro, onde tem campinho com rede nas traves.
O mapa da capital gaúcha embrulhou o meu coração para sempre. Meu coração de presente.