Empossada na última quarta-feira (4), como titular do recriado Ministério do Esporte, Ana Moser terá pela frente um grande desafio, talvez do nível daqueles enfrentamentos históricos que teve em quadra contra as seleções de Cuba, China, União Soviética, Peru e Estados Unidos, as grandes potências do vôlei feminino no período em que ela vestiu a camisa 2 da seleção brasileira.
Desde a nomeação para ocupar a pasta e a posterior posse, a ganhadora da medalha de prata no Mundial de 1994 e de bronze nos Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996 tem tido dias de constantes reuniões e pouco tempo para fazer o que mais gosta, praticar esporte.
Um dia depois de assumir o cargo, a ministra abriu um espaço em sua agenda para atender à coluna e, durante 30 minutos, falou sobre os projetos, desafios e o grande desejo de implementação de um Sistema Nacional do Esporte.
A senhora foi uma atleta de grande trajetória e posteriormente passou a liderar o Instituto Esporte e Educação (criado em 2001) e sempre com uma preocupação com a educação. Agora no Ministério será possível utilizar o esporte como um meio de transformação e não apenas tê-lo como competição ?
A proposta é exatamente esta. Pelo meu perfil, foi essa a escolha para ser ministra. A proposta é inverter a lógica que sempre teve desde a criação do Ministério (em 1995). A Constituição prevê no artigo 217 que “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um”, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê como direito de toda criança e adolescente e todas as legislações preveem a prioridade do investimento sempre para as dimensões do esporte que dizem das crianças, jovens e adultos “comuns”, o que é descrito como Esporte Educacional e Lazer. Isso sempre foi previsto, mas na prática ...
Esporte também é um hábito, não ?
Aí no Sul, nós temos outra cultura, eu sou de Santa Catarina (Blumenau) e a gente aí (na região) tem uma outra cultura, muito mais forte do esporte por influência da colonização europeia de alemães e italianos, é algo mais presente. Se tem a prática de esportes não necessariamente como performance, mas parte do dia a dia. Mas essa não é a realidade de todo o Brasil. E quando se fala de esporte o que é mais visto, até mesmo em termos de políticas públicas, é o investimento no esporte de rendimento. No período pré Jogos Olímpicos do Rio, se teve uns seis anos de grande investimento e desenvolvimento em todas as modalidades pra fazer que o Brasil fosse bem representado. Isso é louvável. E fez que se desenvolvesse bastante o esporte competitivo. Esse foi o ápice de um investimento. Mas está na hora de dar o passe além e fazer valer o que está escrito na legislação e garantir na prática o que está previsto. É um desafio muito maior que fazer uma equipe entre os 10 primeiros em uma Olimpíada. É um desafio que envolve um número muito maior de atores, com potencial de atingir um volume maior de beneficiários, que exige recurso, conhecimento, força política. E dentro da força política está a maior janela de oportunidades que temos no momento. Toda essa proposta que falei na posse e temos trabalhado internamente, posteriormente será apresentado ao Governo para que o presidente Lula e quem ele designar avalie as propostas que estamos elaborando. Mas temos no presidente um esportista. Ele teve acesso ao esporte desde cedo e praticou e que entende e acredita no potencial de desenvolvimento que o esporte tem. E é por isso que estou nessa cadeira.
Antes da eleição, durante o Encontro sobre políticas para o esporte, realizado em São Paulo, o então candidato Lula falou que desejava "pensar o esporte para cuidar da saúde de parte da sociedade". E isso pode ser um passo para no futuro também ter atletas de rendimento ?
Fatalmente, isso vai acontecer, quando maior a base de praticantes. Imagina quantos talentos a gente não desperdiça porque são crianças que não tem acesso à prática de esportes e nós temos isso aos milhões, apenas uma minoria tem acesso à prática de esportes. Lógico que precisa investir nisso. Não adianta investir no alto rendimento e ter a maioria da população praticando esporte, assim como não adianta só investir no esporte para a população e não investir no treinamento, no desenvolvimento dos atletas que se especializem e sejam os talentos. Tem que investir em tudo.
E temos vários exemplos dessas políticas fora do país ...
Eu estive nos Estados Unidos participando de um encontro nacional que eles realizam sobre vôlei, e estavam os técnicos do High School, universidades de todo o país, assim como os clubes, que não são como os daqui, como Pinheiros e Sogipa, são comunitários. E todo universo que eu vi lá, só no feminino, é maior que todos nossos atletas, de todas as modalidades que temos no Brasil praticando pelo menos em competições regionais e nacionais, sem falar em esporte internacional. E é por isso que eles tem qualidade no alto rendimento, porque eles têm uma base de praticantes enorme. E é nessa lógica que estamos baseando as nossas propostas, porque não existe saúde sem atividade física. Não existe nenhum médico, de nenhuma especialidade, que para qualquer questão, até pra saúde mental, que não vá indicar atividade física. O Canadá fez uma política nacional de inserção de toda a população na atividade física. Por quê? Porque era um programa pra saúde da nação. Então todos fazendo atividade física, com estilo de vida ativo. Isso é lógico, comprovado na ciência. É uma questão cultural, e na gestão do presidente Lula será uma novidade. Ele pediu coisas novas, e vamos preparar essas propostas e levar pra ele pra aprovar e buscar implementar.
E para fazer essa implementação é necessário entender as especificidades de cada local, de cada região.
A lógica é essa. O Brasil é um país muito diverso. Não só em vocação pra determinadas modalidades esportivas. Eu sempre falo em Salvador, onde o boxe é um fenômeno. E tem outros nichos, o basquete no interior de São Paulo. Mas pra além disso tem características regionais de estrutura social, da cidade, da própria gestão. No Rio de Janeiro, tem vilas olímpicas por toda a cidade, são mais de 20. Então em qualquer processo de implantação de programas pra atender à população, você vai trabalhar com essas vilas olímpicas ou a partir delas. Elas são importantes. A parceria na cidade envolve as Secretarias de Esporte e a de Educação. Mas tem postos de saúde que dão atividade física. Alguns tem professores de educação física, e essas estruturas seriam envolvidas, assim como do assistente social, que tem os CRAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e CRES (Centro de Reabilitação Esporte e Saúde), que são novas, recentes, porque a política do assistente social é a mais recente entre saúde e educação e você tem equipamentos novos. Tem políticas de direitos humanos, igualdade racial, pra mulher, de trabalho. São transversais. E o esporte pode criar um ambiente para que elas conversem diretamente com a população.
Isso no Rio de Janeiro....
Se você vai pro Nordeste, pro Norte, aí você pensa em municípios e ver o que eles têm. Às vezes tem uma quadra, um ginásio, uma escola mais especializada em esporte ou com equipamento. Pode ter uma AABB, uma APAE, várias estruturas que são fortes no Interior e que atendem crianças, jovens, deficientes, idosos. Então, temos que articular com essas instituições, com projetos. São iniciativas que trabalham com gente, com esporte, com atividade física ou tem potencial para trabalhar. Então é articulação, programas, qualificação, capacitação de recursos humanos, apoio de conhecimento e de práticas para os próprios municípios. Os profissionais que estão nas secretarias às vezes não têm acesso ao que é mais moderno ou mesmo pra fazer bons projetos para serem aprovados em leis de incentivo federal, estadual, ou fazer uma lei de incentivo municipal. São iniciativas que estão previstas em duas legislações que estão no Congresso Nacional, que avançaram nos últimos anos e estão próximas de serem aprovadas e mudar a realidade do esporte no país. O Sistema Nacional do Esporte, que está dentro da Lei Geral do Esporte, e o Plano Nacional do Esporte. Essas legislações foram desenhadas pra buscar esse objetivo, de ampliar o número de brasileiros ativos e a prática de esporte e atividade física em larga escala pelo país, e elas precisam ser espelhadas nos estados e municípios. Esse é um processo de ocupação de espaços, de implantação de ações e projetos e os municípios tem que ser apoiados pra chegar nesse desenvolvimento, não é de uma hora pra outra. Porque no papel é de um jeito e precisa tomar corpo no mundo real. E é isso que estamos trabalhando agora pra estruturar e cumprir os processos para fazer essas políticas andarem.
O fato de ter sido atleta, passado por todas as etapas até o ápice, de ter experiência no trabalho social com o Instituto Esporte e Educação, vivenciando estas duas pontas do processo, o que isso pode lhe ajudar no trabalho no Ministério do Esporte ?
É quase um milagre o que está ocorrendo
ANA MOSER
Ministra do Esporte sobre a recriação da pasta
Eu tive a sorte, a oportunidade de ter toda essa vivência do esporte em todas as dimensões, do educacional, no rendimento, até o máximo que poderia chegar, que é um pódio olímpico. E depois que parei de jogar, eu continuo ativa, praticando esporte como lazer, como saúde... mental inclusive, porque estar ativa, fazer atividade pra mim é felicidade. Estar essa semana como estou (reuniões e atividades no Ministério), desde que começou essa loucura, sem conseguir fazer nada é tristeza, angústia, é uma coisa importante, eu sei na pele. O esporte tem isso. Você não fala sobre o esporte, você faz esporte. Essa vivência é na pele mesmo. Por isso a dificuldade, muitas vezes, à frente do Instituto Esporte e Educação, buscando sensibilizar gestores públicos pra receber os projetos que a gente ofertava, até gratuitamente, porque os projetos são financiados por recursos de empresas, pela lei de incentivo, ou recurso direto. Dificilmente a gente tem recurso da prefeitura. Então, a prefeitura receberia de graça. Mas nesse trabalho eu cruzei com muitos secretários de educação, prefeitos, secretárias de educação, principalmente, que quando foram crianças e jovens nas escolas, eles foram aqueles alunos que o professor de educação física chegava e pegava os dois craques da sala, os que jogavam melhor e falava “vocês dois escolhem os times”. E como se escolhe? Primeiro, os melhores né, e por último ficam os piores. É um experiência traumática para os que ficam por último, que são os “perebas”, os que não jogam bola. E isso marca. Os caras que vão ficando por último pensam “porque vou ficar passando vergonha, vou pegar um atestado médico e pedir dispensa”. E quando eles crescem e viram secretários de educação. E qual o olhar que eles vão ter pra educação física? Não vai ser um bom olhar né? Então essa é a realidade que temos. Por isso eu falo que é quase um milagre o que está acontecendo, essa posição do presidente Lula, pelo entendimento que ele tem de esporte e pela vontade de fazer pros menos favorecidos. Esse é o desafio. Estou falando demais. Mas estou numa motivação muito grande, com muitas ideias e com vontade de realizar.
E como será a relação com o alto rendimento, com o Comitê Olímpico do Brasil, o Paralímpico, as confederações, que tem verba próprias. Eles vão ser independentes, não precisarão depender do Ministério, que pode ser apenas um gestor ?
Tem vários aspectos. Em primeiro lugar, o Governo, através do Ministério (do Esporte), eu pessoalmente, temos todo o interesse que o Brasil tenha o melhor desempenho e seja cada vez melhor em todas as modalidades, que ganhe muitas medalhas, que tenha excelentes atletas em maior número, com técnicos bem qualificados, bem apoiados, com equipamentos e treinamentos em condição de disputar todas as competições. O que queremos é melhorar. Não há nenhum risco e nenhuma vontade em retroceder. É importante deixar em primeiro lugar. Hoje o orçamento do COB é em torno de R$ 200 milhões (via Lei das Loterias), distribuído para as confederações, com suas metas e planejamento. A gente ainda não tem o diagnóstico completo do que se refere a todos os contratos que temos, com repasse de recurso pra essas instituições. Vou analisar ainda, não tenho como fazer um diagnóstico agora. Eu sei que algumas coisas são necessárias e a gente vai rever, examinar isso e dar o melhor encaminhamento a toda essa relação. Na própria legislação nova, na Lei Geral do Esporte e no Plano Nacional tem garantido tudo isso, todas as questões do esporte de rendimento e as portas (do Ministério) estão sempre abertas pra conversar e melhorar cada vez mais. A minha intenção com esporte de competição, com o COB, com as confederações, é apresentar pra essas instituições uma proposta de esporte no país em que a gente possa ter a participação deles. Nós temos ideias e sei que eles também tem. O COB tem materiais e programas, universidade. Então, com certeza, temos muito a conversar e nós vamos apresentar pra essas instituições a nossa proposta de ampliação da prática de esporte para a população, que a gente chama de Rede de Desenvolvimento do Esporte, buscando a participação dessas instituições. Nós temos muitas lacunas no no nosso esporte, nas competições dos Estados, das federações, das cidades. E algumas modalidades tem campeonatos brasileiros de base bem organizados, mas pode avançar nos Estados. Vamos conversar bastante. Ainda vamos montar a nossa Secretaria Nacional de Alto Rendimento (SNEAR) e vamos cuidar disso. Com o Comitê Paralímpico do Brasil, eu já estive com o Misael (Conrado), o presidente do CPB, e eles têm um programa de educação e capacitação de professores das escolas, dos CRAS e CRES, para que eles tenham condições de receber as crianças e jovens deficientes e fazer a iniciação esportiva deles. Eles têm forte essa programação e conversamos muito sobre isso. E por outro lado, eles têm o bom desempenho competitivo. Essa relação com o esporte de rendimento passa pela construção de metas coletivas, acompanhamento, suporte. Sâo instituições que nos últimos anos tiveram muito avanço, financiamento. Ainda não sentamos com o COB, mas vamos fazer uma visita lá no Parque Olímpico. Tem todo esse legado do Parque pra gente cuidar, estruturar uma boa utilização daqueles espaços. Tem bastante coisa pra conversar. Estamos apenas começando.