O pastor luterano Albert Ernest Henry Lehenbauer desembarcou no Brasil em 1915, aos 24 anos, com uma missão: viajar até o sul do país para evangelizar famílias de origem russo-alemã que colonizaram o noroeste do Rio Grande do Sul — mais especificamente na Linha 15 de Novembro e arredores, em Santa Rosa.
Não se sabe se o missionário, nascido nos Estados Unidos, conhecia de antemão as dificuldades que enfrentaria. O local de seu ministério era paupérrimo, assim como seus moradores. Não havia escolas ou médicos disponíveis nas proximidades, e as famílias lutavam com dificuldade para pôr na mesa o pão de cada dia.
Assim, o trabalho, que consistia inicialmente em pregar a religião entre os fiéis, acabou sendo ampliado: ele decidiu educar seu rebanho.
— Ele encomendava discos dos Estados Unidos e fazia saraus de música clássica. Começou a dar aulas, ensinar a ler e a escrever, e ainda influenciava os pais a deixarem as crianças irem à escola por pelo menos um turno, porque naquela época elas trabalhavam na roça. Chegou a escrever livros didáticos para ajudar os professores, que ele mesmo preparava. Ele ensinou as pessoas a conduzir uma assembleia, a fazer votações. Ensinava cidadania mesmo — conta a aposentada Norma Lehenbauer Kloeckner, 67 anos.
Como tudo começou
Norma é filha do primogênito do pastor, Siegfried. Lehenbauer conheceu Helene, sua esposa, na Linha 15 de Novembro, e com ela teve oito filhos. Em 1922, o casal embarcou para os Estados Unidos, onde Lehenbauer trataria problemas de saúde. O missionário ainda aproveitou o período de licença para visitar uma de suas irmãs, que cultivava soja em Hannibal, no Estado do Missouri.
O religioso já havia pesquisado a respeito das vantagens da oleaginosa, que seria capaz de beneficiar o solo aumentando sua camada vegetal, facilitando a infiltração de água e reduzindo a erosão, além de favorecer o desenvolvimento de bactérias que fixam nitrogênio, um elemento importante para as plantas.
Assim, quando a família retornou ao Brasil, em 1923, trouxe na bagagem uma garrafa de vidro cheia de sementes do grão. Na época, os agricultores da Linha 15 plantavam milho, feijão e batata e dedicavam-se à criação de aves e suínos.
O pastor Lehenbauer acreditava que o cultivo da soja poderia melhorar as condições econômicas dos colonos, já que, além de enriquecer o solo, poderia ser usada na nutrição dos porcos. Dessa forma, ao chegar a Santa Rosa, semeou os grãos em sua horta — um pequeno espaço entre a igreja e a casa pastoral.
O restante ele distribuiu entre quatro famílias locais: Brachmann, Schwartz, Bessel e Müller, com a promessa de que devolveriam parte da colheita à igreja para que as sementes fossem repassadas a outros colonos. E assim foi feito.
Em 1924, há exatamente cem anos, a primeira safra de soja foi colhida em Santa Rosa.
— Os produtores da região passaram a plantar soja porque ela começou a ser distribuída. Meu avô atendia muitas paróquias, ia cavalgando com grãos para oferecer às famílias. Ele tinha certeza de que, no momento em que a soja começasse a produzir, os agricultores teriam mais condições econômicas de sair da pobreza extrema. Isso foi fundamental para o progresso da comunidade e acabou se espalhando pelo país. Mas acho que ele nunca imaginou que isso aconteceria — comenta Norma.
A aposentada Hildegart Schwartz Schulz, 71 anos, é neta de Bruno Schwartz, um dos pioneiros agraciados com as sementes importadas pelo pastor. Ela, que chegou a trabalhar na roça junto com o avô na infância, conta que o patriarca costumava comentar sobre as dificuldades que a família enfrentou ao chegar à Linha 15, em 1910.
— Quando eles vieram para cá, era tudo mato. As terras eram fracas, não havia calcário. Por isso, foram desmatando muito, porque as áreas cultivadas há mais tempo já não produziam nada. Então, quando ele recebeu a soja, plantou, porque o pastor dizia que seria bom. Meu avô contou que, na primeira vez, os pés de soja cresceram bastante, mas não produziram muito. Foi depois que eles pegaram o jeito de plantar — recorda.
A princípio, segundo Hildegart, os moradores não sabiam muito bem o que fazer com os grãos colhidos. Mas foram explorando as possibilidades. Assim, além de alimentar animais, chegaram a criar uma bebida semelhante ao café feita com soja e pratos à base da oleaginosa.
— Eu ainda tenho uma receita de bolinhos de soja que minha avó fazia — conta a aposentada, com orgulho.
Trajetória do grão no país
- 1882: Segundo registros históricos, os primeiros cultivos experimentais de soja começaram este ano, na Bahia. O plantio não teve sucesso.
- 1901: Começam os cultivos na Estação Agropecuária de Campinas e a distribuição de sementes para produtores paulistas.
- 1923: Soja é introduzida no Rio Grande do Sul pelo pastor luterano Albert Lehenbauer. Como as condições climáticas do Estado são similares às das regiões produtoras nos Estados Unidos, o plantio é bem-sucedido.
- 1924: É realizada a primeira colheita de soja no Estado.
- 1955: O pastor Albert Lehenbauer morre em Buenos Aires.
- Década de 1970: Marca a expansão da soja no Brasil. Em 1970, o país produziu 1,5 milhão de toneladas e, nove anos depois, colhia 15 milhões de toneladas em 1979. A década também testemunha a ampliação da indústria de óleo de soja.
- 1975: É criada a Embrapa Soja, que desenvolveu novas cultivares adaptáveis às condições climáticas das regiões produtoras mais quentes, como o Centro-Oeste.
- 1995: O Brasil começa a desenvolver cultivares tolerantes a herbicidas.
- Hoje: O Brasil é o maior produtor de soja do mundo. Estima-se que, na safra 2024/2025, a produção seja de 169 milhões de toneladas. O país é também o maior exportador do grão, responsável por cerca de 42% da produção mundial.
Berço nacional da soja
Este marco na produção comercial de soja no Brasil será celebrado na 24ª Fenasoja, cuja programação incluirá homenagens a Albert Lehenbauer e aos quatro agricultores que deram início à tradição agrícola que tornou Santa Rosa o berço nacional da soja — título reconhecido pela Lei 14.349/22, sancionada em 2022 pelo então presidente Jair Bolsonaro.
No local onde, há um século, o pastor plantou os primeiros grãos, será inaugurado o monumento Marco Zero da Soja no Brasil.
O prefeito de Santa Rosa, Anderson Mantei, destaca a importância da homenagem:
— Foi através da soja que desenvolvemos nossa agricultura, indústrias e também o comércio. Se a soja vai bem, tudo vai bem. Aqui, os reflexos em toda nossa economia estão baseados na agricultura, e a soja é, e sempre foi, a base de tudo para nós.
Crescimento e desafios
Alcançar a relevância atual levou décadas. O cultivo da soja expandiu-se rapidamente no Rio Grande do Sul, impulsionado pela estrutura já existente para o plantio de trigo nas regiões das Missões, Planalto Médio e Alto Uruguai. Até o início da década de 1970, a soja era considerada uma cultura secundária em comparação ao trigo.
Na região de Santa Rosa, um desafio adicional era a baixa qualidade do solo.
— Em 1968, pesquisadores da UFRGS e da Universidade de Wisconsin começaram a estudar o solo da região na chamada "Operação Tatu". Foram coletadas mais de 1,4 mil amostras e detectou-se que o solo era bastante ácido e precisava de calcário. A partir daí, a soja passou a ser largamente difundida na região — conta Milton Racho, integrante do conselho consultivo da Fenasoja e ex-presidente da feira em 2008.
A indústria da soja
A partir da década de 1970, a soja ganhou mais atenção dos agricultores, impulsionada pelo aumento na demanda por óleo vegetal. Na época, o empresário chinês Sheun Ming Ling (1921–2020) instalou em Santa Rosa a Indústria Gaúcha de Óleos (Igol), que mais tarde se tornaria Olvebra e, posteriormente, Camera. A empresa destacou-se como um dos maiores processadores de soja da América Latina.
— A partir daí, a soja começou a ganhar dimensão no país, muito pelos gaúchos que migraram para Santa Catarina, Paraná e Paraguai, levando junto a cultura da soja. Houve um grande movimento de migração, porque nesses locais havia muitas terras baratas e férteis — explica Racho.
Pesquisa e expansão nacional
O crescente interesse pela soja incentivou avanços significativos na pesquisa agrícola. Em 1975, foi fundada a Embrapa Soja, com a missão de desenvolver cultivares adaptadas ao clima mais quente, permitindo a expansão da cultura para o Centro-Oeste, Nordeste e Norte. Esse movimento também impulsionou a indústria de máquinas agrícolas.
Em poucos anos, a soja se consolidou como o principal produto da agricultura no Rio Grande do Sul, e o Brasil tornou-se o maior produtor de soja do mundo.
Reconhecimento e celebrações
Em fevereiro passado, integrantes da diretoria da Fenasoja viajaram aos Estados Unidos para visitar a fazenda que deu origem ao grão trazido ao Brasil. O evento marcou o início das celebrações em reconhecimento à ação do pastor Albert Lehenbauer.
— Foi por um gesto de comunhão de um missionário que Santa Rosa se tornou o berço da soja, e o que começou aqui explodiu para o Brasil. Nesta viagem, conhecemos aquele solo sagrado e alguns descendentes do pastor que ainda plantam naquela terra. Oito deles virão dos Estados Unidos para a Fenasoja, e outros quatro, de Buenos Aires, na Argentina, onde o pastor morreu após deixar Santa Rosa — orgulha-se o presidente da Fenasoja, Dário Germano.