Resíduos do herbicida 2,4-D, aplicado em lavouras de soja, foram encontrados na zona urbana de Santana do Livramento, na Fronteira. Nesta sexta-feira (4), a Secretaria da Agricultura recebeu laudo laboratorial com resultado positivo. A coleta foi feita em uma amostra de cinamomo da Praça Oriovaldo Grecelle, em frente ao Hospital Santa Casa, região central da cidade. A quantidade de resquício encontrada foi 0,01 miligrama por quilo, o que já é considerado resíduo do químico. A deriva do herbicida 2,4-D já foi comprovada em videiras e oliveiras em regiões do Estado.
— Nos surpreendeu, sim, ter encontrado isso em zona urbana. Quem detectou foram os nossos fiscais que estão na rua. Começaram a verificar dentro da cidade que vegetais tinham os mesmos sintomas do campo (frutos secam e não se desenvolvem, por exemplo) — diz Fabíola Boscaini Lopes, chefe da Divisão de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal da Agricultura.
Agora, os laudos serão encaminhados para a Secretaria da Saúde e para o Ministério Público, que tem inquérito em tramitação para apurar os danos causados pela deriva do agrotóxico. A promotora Anelise Grehs, responsável pelo caso, trabalha com três hipóteses: requerer judicialmente a suspensão do uso do 2,4-D, criar zonas de exclusão em que esse produto não poderia ser utilizado ou fazer acordo com produtores para que o herbicida seja substituído por outro menos danoso.
— Pedi que nos encaminhem os laudos com urgência. Vamos analisar se, a partir deles, há ou não a necessidade de buscar mais elementos de prova — resumiu a promotora, sem antecipar qualquer iniciativa.
Como a região da Campanha é o principal foco do problema, coletas também foram feitas nas zonas urbanas de Bagé e Dom Pedrito. Os resultados foram "não detectável", o que significa nem positivo nem negativo. Fabíola explica que o "não detectável" pode ter ocorrido por conta de chuvas que caíram na semana das coletas — 18 de dezembro — e também pelo fato de a aplicação do 2,4-D ocorrer entre agosto e setembro — tempo suficiente para o produto não ser mais detectado nas plantas.
Ela argumentou que foram feitas apenas três coletas em zona urbana porque o foco estava em verificar a contaminação de videiras e oliveiras na zona rural. Ainda explicou que o contrato da Secretaria da Agricultura com o laboratório que fez as análises se encerrava em 20 de dezembro, o que impediu a realização de mais coletas.
Até meados do mês passado, os resultados apontavam que, das 53 amostras coletadas na zona rural de 18 municípios gaúchos, 52 resultaram em laudos positivos para a contaminação pelo 2,4-D, atingindo 47 propriedades.
O 2,4-D é um herbicida aplicado nas lavouras de soja antes de a plantação ser iniciada. O objetivo é conter e destruir a erva-daninha conhecida como buva. O produto atua no sistema hormonal dos vegetais, fazendo com que entrem em colapso e não se desenvolvam, morrendo ao final. As plantas costumam ficar retorcidas. No campo, a suspeita é de que o problema tenha ocorrido em decorrência de má aplicação do agrotóxico, o que causou deriva para propriedades vizinhas de cultivo de videiras e oliveiras, causando perdas com prejuízos milionários para a economia local.
Professor sênior da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) e presidente do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), José Otávio Menten esclarece que a deriva só ocorre com má aplicação de produtos químicos. Nesses casos, acrescenta, é preciso envolver assistência técnica e poder público — responsável por acompanhar eventuais danos causados ao ambiente ou à saúde pública.
— É preciso ter cuidado para que casos pontuais não criminalizem o uso de um produto levando-o à proibição, seja ele qual for — alerta Menten.
Riscos toxicológicos às pessoas são muito baixos, dizem especialistas
Sobre os riscos à população urbana, eventualmente exposta à deriva, Menten esclarece que os mecanismos de ação de um herbicida são muito distantes dos processos fisiológicos do ser humano e dos animais.
— Um herbicida é desenvolvido para afetar ervas daninhas. A chance de causar danos às pessoas é muito pequena. Precisaria de doses muito altas de contato para se cogitar algum risco, a ser investigado. A margem de segurança dos efeitos desses produtos fora do alvo são muito grandes — afirma o professor, citando que, do ponto de vista toxicológico, o herbicida é mais seguro do que um inseticida ou fungicida, por exemplo.
Médico toxicologista com 40 anos de atuação, e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Angelo Trapé alerta que antes de tirar qualquer conclusão precipitada é preciso fazer um estudo clínico epidemiológico para avaliar efeitos à saúde humana:
— E isso é dever do poder público. A metodologia de qualquer análise precisa ser científica, para não causar pânico sem respaldo.
O especialista também pondera que a quantidade encontrada no cinamomo é insuficiente para representar qualquer risco à população, mesmo que a planta fosse comestível. Ao avaliar possíveis consequências da descoberta ao humano e ao ambiente urbano, Gianfranco Badin Aliti, chefe da Divisão de Agrotóxicos da Fepam, destaca a complexidade do tema e a inviabilidade de se tirar conclusões imediatas.
— O impacto é complexo, envolve quantidades e dosagem. É um fato a ser avaliado, precisaremos de estudos. O mais relevante é o impacto disso na comunidade urbana, a deriva chegando ao contato das pessoas. Isso é o que me preocupa, mas eventuais efeitos é muito complexo de avaliar — diz Aliti.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é quem define a classe toxicológica dos produtos fitossanitários. São realizados estudos crônicos e subcrônicos que visam avaliar efeitos de curto e longo prazo, como potencial para causar câncer ou má-formação, potencial para causar mutações, além de efeitos sobre a reprodução. Segundo a Iniciativa 2,4-D, grupo formado por representantes das empresas Corteva Agriscience, Nufarm e Albaugh, com o propósito de gerar informação técnica sobre o uso correto e seguro de defensivos agrícolas, o produto já passou por reavaliações e continua sendo extremamente seguro para uso na agricultura.