Quando completava quase 70 anos de história, em 2000, a Vinícola Aurora começava a negociar uma dívida com bancos e fornecedores que somava mais do que o dobro do seu faturamento.
A pior crise da história da cooperativa de Bento Gonçalves, na serra gaúcha, levou consigo mais de 600 associados desacreditados. A busca pela recuperação teve ainda um episódio trágico, com a morte de dois diretores no acidente da TAM, em 2007, em São Paulo. Hoje, com as finanças recuperadas, é uma das principais vinícolas do país e tem planos audaciosos:
– Ficamos 15 anos sem investir, pagando contas. Daqui para frente, temos grandes projetos para colocar em prática – diz Itacir Pozza, presidente da Cooperativa Aurora, que tem nos sucos de uva mais de 50% dos negócios, seguido dos espumantes e dos vinhos finos e de mesa. Em 2016, a cooperativa faturou cerca de R$ 500 milhões.
Um dos principais investimentos será concretizado na próxima safra, quando instalarão robôs para agilizar o recebimento da produção de uvas. O sistema automatizado, que reduz o desgaste físico com mão de obra, será utilizado ainda em propriedades de cooperados.
– É uma iniciativa pioneira, que busca também estimular os filhos de produtores a ficarem no campo – conta Pozza, que calcula aplicar, nesta primeira etapa, R$ 3 milhões no projeto.
O entusiasmo de agora em nada lembra o começo dos anos 2000, quando a cooperativa lutava para não fechar as portas por conta de dívida superior a R$ 100 milhões. Na época, os 1,7 mil associados foram reduzidos para 1,1 mil e os 550 funcionários para menos de 200.
– Quase um terço dos associados abandonou a cooperativa. A recuperação foi longa, exigiu uma cota de sacrifício de todos. Não se resgata a credibilidade do mercado de um dia para o outro – recorda o diretor-executivo Hermínio Ficagna, que acompanhou todo o processo.
Para reerguer a vinícola, fundada por 16 famílias de produtores em 1931, os associados que acreditavam na volta por cima chegaram a deixar três safras depositadas na cooperativa. O dinheiro era usado como capital de giro para continuar funcionando.
– O próprio associado ajudou a financiar a cooperativa naquele período. Não fosse essa união, não estaríamos aqui hoje – conta Ficagna, que lembra de datas e detalhes exatos das negociações.
As últimas parcelas da dívida, com prazo para pagamento até 2019, foram antecipadas e quitadas em 2016.
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Abertura de mercado desafiou vinícolas
Embora emblemática, a crise financeira enfrentada pela Aurora não foi exclusividade da cooperativa. Na década de 1990, com a abertura do mercado internacional e consequente concorrência com vinhos importados, muitas empresas sucumbiram:
– As vinícolas brasileiras tiveram que se recolocar no mercado de outra forma, sendo desafiadas a aumentar a qualidade de seus produtos. Quem não fez isso, ficou pelo caminho – recorda Carlos Paviani, diretor-executivo do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin).
Foi a necessidade de se reinventar diante da globalização que levou muitas vinícolas a apostarem em espumantes, sucos de uvas e vinhos finos – que praticamente não eram produzidos na época.
O resgate da sofisticação
Os lustres que iluminam hoje a vinícola Peterlongo, em Garibaldi, remontam ao seu passado charmoso. Fundada há mais de cem anos, a marca ficou conhecida em todo o Brasil pela alta qualidade e presença em banquetes oficiais de celebridades. O castelo da família, construído em pedra basalto, segue os padrões da região de Champagne, na França. Aliás, é a única empresa brasileira que pode usar o termo champagne em seus produtos porque já utilizava o nome em 1915, antes da adoção de denominação de origem pelos franceses.
A trajetória de sofisticação, que levou a vinícola ao mercado americano ainda na década de 1940, foi interrompida quando a empresa passou a produzir filtrados doces e bebidas de baixo valor agregado. Da década de 1960 até o começo dos anos 2000, um filtrado doce popular chegou a responder por 90% dos negócios da empresa.
– Esse produto não combina com a história da Peterlongo.
Foi importante para a empresa e continuará sendo. Mas nosso foco agora é resgatar todo o glamour que existiu na sua essência, no seu DNA, com espumantes e vinhos finos de alto valor agregado – diz o empresário Luiz Carlos Sella, que entrou em 2002 na empresa.
Na época, a Peterlongo acumulava dívida superior a R$ 20 milhões e cinco pedidos de falência na Justiça. Com expertise em buscar empresas em dificuldades financeiras, e já atuando no mercado de pneus na Serra, o empresário paulista vislumbrou na vinícola uma oportunidade de negócio.
– Em um primeiro momento recuperamos as finanças e a imagem da empresa perante o mercado. Mantivemos tudo, a marca, o local, só melhoramos o que entendemos que era necessário – conta Sella.
De 2002 a 2015, o volume de produção cresceu 400%. Em 2016, foi a segunda vinícola no país que mais exportou. A maior conquista foi o mercado da China. Passada a fase crítica, a prioridade é aumentar a participação de mercado dos produtos de alta qualidade. Para isso, a vinícola contratou o enólogo francês Pascal Marty, referência na indústria do vinho.
– Até 2020, queremos ter o melhor vinho do Brasil – almeja o empresário, que em 15 anos investiu quase R$ 60 milhões na vinícola.
Volta por cima passou por tecnologia
A nova fase conquistada pelas vinícolas gaúchas teve um fator em comum: a valorização da pesquisa e da tecnologia na produção de uvas.
– O grande mérito das empresas que conseguiram sobreviver e hoje retomam o crescimento foi a sensibilidade para promover uma melhora tecnológica e qualitativa de seus produtos – considera José Fernando Protas, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves.
A pressão da concorrência sacudiu o mercado brasileiro na década de 1990, quando a globalização da economia e a consolidação do Mercosul permitiram a entrada de importados.
– Na época, o Brasil tinha uma produção de vinhos à base de uvas híbridas americanas, com baixo grau de tecnologia adotado pelas empresas – lembra Protas.
A partir de então, com um conjunto de varietais com características específicas, como cor e quantidade de açúcar, as vinícolas conseguiram adequar suas produções às condições físicas e climáticas de cada região do Estado. Somente a Embrapa Uva e Vinho desenvolveu oito novas variedades nas últimas décadas, que foram largamente adotadas pelos produtores.
– E o desafio da competitividade continua, com a tecnologia como elemento estratégico para a sustentabilidade do setor vitivinícola – resume o pesquisador.