Ao dominar rotas de coleta de leite no interior gaúcho, onde conforme autoridades municipais uma linha de transporte chega a ser negociada por R$ 200 mil, atravessadores construíram uma relação de dependência com produtores. Com necessidade crescente de matéria-prima, as indústrias precisam dos volumes captados em propriedades onde transportadores terceirizados adiantam pagamentos, entregam insumos ou oferecem preços mais altos.
Transportadores autônomos estão no foco das investigações da Operação Leite Compen$ado, que desarticulou esquemas de adulteração de leite com água, ureia, formol e, mais recentemente, água oxigenada. Mas a atividade, que não tem fiscalização, só garante mercado quando consegue cooptar produtores. Boa parte dos mais de 10 milhões de litros de leite que abastecem as 160 indústrias lácteas no Rio Grande do Sul é transportada por caminhões-tanque de cooperativas e indústrias. Ao menos 10% desse volume passa pelas mãos de atravessadores, que recebem pela quantidade revendida.
- A forma de remuneração é um dos grandes problemas. Deveria ser por quilômetro rodado, e não por volume - aponta o promotor de Justiça Mauro Rockenbach, responsável pelas investigações criminais da Operação Leite Compen$ado.
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Ministério da Agricultura não monitora transporte entre propriedade e indústria
Em maio, a operação do Ministério Público Estadual (MPE) e do Ministério da Agricultura causou indignação entre consumidores no Estado. Seis meses depois, nove pessoas continuam presas e outras 10 respondem em liberdade o processo por colaborar com a fraude de adulteração do leite.
- O relacionamento do produtor deveria ser direto com a indústria. A existência de um terceiro elo abre espaço para fraudes, por isso o processo pós-propriedade tem de ser vinculado a uma indústria - defende Elton Weber, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (Fetag).
Cinco pontos para ficar atento:
Basear o negócio apenas no valor oferecido é arriscado
Produtor de leite há mais de 30 anos em Ajuricaba, no noroeste gaúcho, Francisco Dallabrida cansou de depender dos atravessadores para vender a produção de 15 mil litros por mês.
- Alguns chegavam aqui e acertavam um valor pelo litro e no final do mês a nota vinha com preço inferior, chegando a R$ 0,10 a menos por litro - explica Dallabrida, 59 anos.
A escolha de vender a atravessadores, em vez de entregar para cooperativas, é justificada pela facilidade oferecida - como troca de leite por ração, por exemplo. Agora, receoso com o destino do produto que sai da propriedade, Dallabrida passou a buscar informações das empresas que compram e das indústrias que irão receber o alimento.
- Antes, nem sabia onde o produto era entregue - diz o Dallabrida, que cria 18 vacas no interior do município.
Não ceder à ganância diante de um preço artificialmente alto e conferir a idoneidade da empresa de coleta são recomendações aos produtores para preservar a qualidade do leite que sai das fazendas.
- O estelionatário é preparado, busca estabelecer uma relação de confiança. Por isso, o produtor não pode avaliar apenas o preço oferecido, mas também o risco que irá correr - alerta Jorge Rodrigues, presidente da Comissão da Pecuária de Leite da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul).
No caso de uma suposta adulteração dos volumes vendidos seria apenas fraude comercial, já que o leite UHT é isento de Imposto sobre Circulação de Mercadorias
Migração para as pequenas indústrias
Barrado em grandes indústrias, o leite adulterado tem como segundo destino as pequenas empresas de laticínios. Em escutas telefônicas, o Ministério Público Estadual constatou que após ter a carga rejeitada por indústrias de maior porte, atravessadores tentaram vender a matéria-prima para pequenos estabelecimentos.
- Quando algum transportador oferece leite com preço abaixo do mercado é porque há algo de estranho - ressalta Clóvis Roesler, presidente da Associação das Pequenas Industrias de Laticínios do Estado (Apil) , que representa 50 indústrias associadas.
Conforme Roesler, a prática de tentar "empurrar" leite de má qualidade para indústrias de derivados, como queijarias, é bastante conhecida por profissionais do setor.
- Algumas empresas compram esse leite por um preço muito baixo, de 20% a 30% menor. Essas queijarias citadas na operação não são associadas da entidade - argumenta o dirigente da Apil.
Para o dirigente, os problemas em torno do transporte de leite começam ainda na propriedade, quando o produtor faz uma espécie de leilão para quem pagar mais pelo leite.