Uma enchente como a registrada em maio no Rio Grande do Sul pode alargar temporariamente o tamanho de rios e, em alguns casos, alterar o curso da água. Tais mudanças, mesmo que momentâneas, podem ser extremamente prejudiciais para a fauna aquática. Ainda não há dados que comprovem os efeitos da tragédia climática nos corpos d’água do Estado, mas pesquisadores trabalham com hipóteses de problemas que podem ter afetado as espécies de peixes e outros micro-organismos.
Segundo o biólogo Fernando Becker, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os monitoramentos das espécies não são diários. Eles costumam ser feitos, pelo menos, uma vez ao ano. Por isso, ainda não é possível contar com dados científicos sobre a situação dos rios, da fauna e da flora aquática após as grandes cheias. Para Becker e outros especialistas, há três cenários possíveis, que precisarão ser confirmados em estudos. Todas as teorias apontam para efeitos diretos na biodiversidade e na pesca.
— O primeiro cenário seria a contaminação, porque essa água que extravasou atingiu locais que podem ter substâncias tóxicas que podem ter ido parar dentro da água. Isso chega nos peixes e no resto da fauna também — pontua Becker, que também destaca o risco dessa poluição causar a morte instantânea dos peixes e dos outros micro-organismos e provocar, ainda, uma intoxicação crônica, que, com o tempo, vai prejudicar o crescimento e a reprodução dessas espécies.
A outra hipótese contempla a possibilidade de a enchente ter modificado o ambiente físico dos rios. Ou seja, a quantidade de sedimentos – como terra, argila e cascalho, por exemplo – transportada para dentro dos rios pode ter impactado negativamente a qualidade da água. Nelson Fontoura, diretor do Instituto do Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), acredita que isso impacta a alimentação e o hábitat das espécies.
— Isso aumenta muito a turbidez da água. E, para algumas espécies, principalmente aquelas que fazem busca de alimento visualmente, existe uma dificuldade maior. Eles não enxergam por causa da turbidez. Esses sedimentos vão sendo carregados e depositados em áreas de menor corrente, soterrando os animais que vivem lá, como moluscos e crustáceos. Não temos uma dimensão numérica, mas podemos falar que bilhões de organismos perderam a vida nesse cenário — afirma.
Além de aumentar o transporte de sedimentos, a força e o volume de água podem ter outros dois desdobramentos: a erosão das margens e a dificuldade de algumas espécies de lutar contra a corrente. O primeiro é o processo de desgaste das bordas dos rios causado pela ação da água. Para Becker, as margens erodidas são preocupantes porque são onde muitas espécies se reproduzem. Já o segundo, para Fontoura, pode causar a mortalidade de mais animais.
— Nesses rios como o Taquari, Antas e seus afluentes, a velocidade de corrente é tão brutal que dificilmente o peixe consegue lutar contra isso. Ele acaba sendo carregado rio abaixo e muitos acabam morrendo, ou se lesionando — acrescenta.
Espécies invasoras
O terceiro cenário considera a possibilidade de invasões biológicas. Durante a enchente, os níveis elevados de água podem ter aumentado ou iniciado conexões entre rios, riachos e lagos, criando corredores temporários que permitem que as espécies se desloquem de uma bacia para outra. É possível que peixes naturais da Bacia do Uruguai sejam encontrados na Bacia do Jacuí ou do Tramandaí, por exemplo.
— Nós desconfiamos de que já existam contatos, pelo menos temporariamente, entre essas bacias; e com as cheias, a chance desses contatos terem ocorrido é maior. Desconfiamos porque várias espécies já passaram de uma bacia para outra, como as palometas, que vieram da Bacia do Uruguai para a Lagoa dos Patos e agora, por causa da enchente, podem chegar à Bacia do Tramandaí — explica Becker.
Segundo o pesquisador, a presença das palometas é preocupante porque a espécie tem um comportamento predatório agressivo. Becker conta que as palometas costumam atacar os peixes nas redes dos pescadores, afetando negativamente a pesca ao reduzir populações de espécies nativas. Além disso, podem desequilibrar as cadeias alimentícias dos ecossistemas aquáticos.
A enchente foi responsável por aumentar a conexão entre a Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim, por meio do canal São Gonçalo. Para o pesquisador Alexandre Garcia, professor do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), a invasão de espécies também é uma preocupação no sul do Estado, uma vez que os corpos d’água têm características específicas.
— Aqui é um ambiente de transição entre o mar e a água doce, que chamamos de salobra. E tem peixes que são típicos para essa região. Então, saindo toda essa água, a tendência é que esses peixes sejam empurrados lá para fora e no lugar deles comece a aparecer um monte de peixe de água doce. É uma mudança grande, afeta os pescadores e a reprodução das espécies daqui — defende.
É uma mudança grande, afeta os pescadores e afeta a reprodução das espécies daqui
ALEXANDRE GARCIA
Professor do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg)
Becker ressalta ainda que, quando essa mudança ocorre na mesma bacia, não é um problema. Peixes típicos do Rio dos Sinos, por exemplo, poderiam aparecer em outros corpos d'água da Bacia do Jacuí, como o Guaíba, sem caracterizar invasão.
Efeitos na pesca
Se comprovadas, as três hipóteses apresentadas pelos pesquisadores indicariam uma perda significativa para a pesca no Estado. Isso porque, nos três cenários, há problemas envolvendo a reprodução e alta mortalidade das espécies. O diretor do Instituto do Meio Ambiente acredita que a situação poderia ter sido ainda mais crítica se a enchente tivesse ocorrido durante a primavera, que é a época de reprodução da fauna aquática.
— Tendo mortalidade de peixes, que pode ter sido expressiva, com certeza vai implicar em redução da oferta para os pescadores. Isso pode se prolongar ainda por alguns anos — prevê Fontoura.
Para que a vida aquática volte a ser o que era antes das cheias, é necessário aguardar a ação da natureza e torcer para que novos episódios de enchente não impactem ainda mais os corpos d’água.