Em tramitação no Senado, a Proposta de Emenda à Constituição conhecida como “PEC das Praias” vem causando divergências de percepção sobre seus efeitos mesmo entre pesquisadores de áreas costeiras e advogados da área ambiental. Ainda que todos concordem que o texto não prevê a privatização desses espaços, o cerne da discussão é a respeito do impacto secundário da mudança: enquanto alguns consideram que a proteção ambiental de praias e terrenos de marinha seguiria intacta, outros se preocupam com que a venda desses locais pela União enfraqueça os instrumentos de conservação e limite para os empreendimentos, podendo até mesmo restringir o acesso a algumas praias.
Já aprovada na Câmara dos Deputados, a PEC 3/2022 prevê a extinção da figura dos “terrenos de marinha”, uma faixa de 33 metros a partir do ponto mais alto que a maré atinge na área costeira, que hoje é de propriedade da União e não pode ser vendida. Nesses espaços, concentram-se 564 mil residências e estabelecimentos comerciais no país regularmente registrados e pagando taxas anuais que, em 2023, renderam R$ 1,1 bilhão ao cofre público, além de outros milhares de imóveis não registrados.
Apesar do voto favorável que recebeu na Câmara, a PEC tem sido criticada por entes do governo federal. A Marinha do Brasil, por exemplo, defendeu que os terrenos de marinha – que, mesmo com esse nome, não são de propriedade da Marinha do Brasil – são “essenciais para a defesa da soberania nacional, o desenvolvimento econômico e a proteção do meio ambiente”, e que essas faixas à beira-mar constituem “não apenas uma questão administrativa, mas patrimônio essencial para a salvaguarda dos interesses nacionais e do desenvolvimento sustentável” do país.
O governo federal também se posiciona contrário à proposta, por entender que a medida "impactaria diretamente a proteção das áreas costeiras e a forma como estas são ocupadas pela população” e traria riscos como “especulação imobiliária, impactos ambientais descontrolados, perda de receitas para a União e insegurança jurídica”.
Visão de pesquisadores
A reportagem de GZH conversou com pesquisadores e profissionais do Direito Ambiental para entender quais as possíveis mudanças e impactos diretos e indiretos, caso a PEC seja aprovada. As visões dos dois estudiosos sobre Gerenciamento Costeiro ouvidos são diferentes entre si.
Segundo Eduardo Guimarães Barboza, ex-diretor do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Lei 7.661/1988, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, já determina que praias são bens públicos de uso comum do povo e assegura seu livre acesso a elas em qualquer direção. Por esse motivo, entende os terrenos de marinha como uma figura administrativa criada em 1831, período imperial, focada em uma questão de segurança, e não ambiental.
— Onde existem urbanizações de terrenos de marinha, sempre existem ruas, ou as chamadas “servidões”, que dão acesso à praia. Eu vejo que existe uma certa mistura, quando se fala nessa PEC, que não condiz com a realidade, porque a lei que rege a praia é outra, e a lei de proteção ambiental também é outra: é o Código Florestal de 2012, que, esse sim, protege os ecossistemas costeiros em uma ampla faixa territorial, que não é de apenas 33 metros — observa Barboza.
Outro ponto que o pesquisador salienta é que, em média, 40% da região costeira do Brasil sofre com erosões, o que, somado à elevação do nível relativo do mar nas últimas décadas, faz com que nesses locais já não existam mais terrenos de marinha conforme linha demarcatória traçada em 1946. No Rio Grande do Sul, o percentual é de 49% da costa com erosões.
Conforme Barboza, o que muda é, simplesmente, o fim do pagamento do tributo anual que, hoje, quem possui uma cessão de uso desses terrenos, paga à União. Em sua opinião, a polêmica envolvida na questão diz respeito a uma batalha política travada, e não a aspectos técnicos.
Já Milton Lafourcade Asmus, professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) com a maior parte de seus 48 anos de carreira dedicados ao Instituto de Oceanografia, destaca que a região costeira é muito dinâmica, pois concentra uma série de energias e processos marinhos que trazem benefícios sociais e econômicos e, por isso, o ambiente é muito ocupado pela população, o que gera uma série de impactos ecológicos. Dessa forma, as erosões podem ter ampliado ou reduzido os terrenos de marinha, a depender da região.
— Em alguns lugares esses terrenos de marinha já não existem, mas em muitos outros não só existem como foram expandidos. É uma zona muito dinâmica, que pode ter recuado em alguns lugares e, em outros, ter avançado. Há uma tendência dominante de acreção (acúmulo de matéria), pelo tipo de costa que temos no Brasil, muito chegada a sedimentos, que tem sido revertida um pouco devido à mudança climática global — pontua Asmus.
Na visão do docente da Furg, se aprovada, a PEC faria com que se perdessem instrumentos importantes para garantir a gestão pública dessas áreas à beira-mar.
— Se fala muito na questão do acesso à praia. Com a perda do conceito de terreno de marinha, mesmo que não se mexa na praia, o acesso à praia pode ser privatizado eventualmente, ainda que isso não aconteça automaticamente, e o acesso à praia tem um valor enorme, inclusive cultural — avalia o pesquisador.
Para Asmus, essa discussão acontece em meio a uma tendência global de fortalecer a presença pública e os instrumentos de monitoramento e gestão das regiões costeiras, em virtude das mudanças climáticas.
Visão de especialistas em Direito Ambiental
Entre as duas advogadas especializadas na área ambiental consultadas pela reportagem, tampouco há consenso. Enquanto Fabiana Figueiró, sócia do Souto Correa Advogados, considera que a mudança tem pouco a ver com a pauta ambiental, ainda que demande alguns cuidados e regulamentação, Luciana Lanna, sócia no escritório Vieira Rezende, entende que a PEC pode trazer muita insegurança jurídica e será necessário reforçar a responsabilidade dos municípios nesses processos.
Para Fabiana, assim como para Barboza, o livre acesso às praias está preservado pela Lei 7.661, enquanto a preservação ambiental da região está protegida pelo Código Florestal. Com relação à demarcação desses terrenos, a advogada entende que é positivo atualizar a legislação.
— Nós temos uma legislação muito defasada e uma Secretaria de Patrimônio da União que parece não conseguir atender a todos os anseios de fiscalização, de diagnóstico e de gestão, em que pese receba valores importantes de pessoas que ocupam essas áreas. É algo que precisa ser modernizado e repensado — afirma Fabiana.
No entendimento da advogada, a mudança proposta põe luz à discussão, mas alguns pontos precisam ser melhor trabalhados, como a forma de transferência do domínio do terreno para foreiros e o pagamento dos valores de compra, que podem não ser viáveis para populações tradicionais, como pescadores. Uma regulamentação da PEC poderia sanar esses impasses.
De acordo com Luciana, a participação das prefeituras aumenta com a aprovação dessa proposta, uma vez que muitos espaços ficarão sob sua administração. Com a maioria dos municípios brasileiros possuindo competência para o licenciamento ambiental, e caberá a eles, no momento de conceder as licenças de um empreendimento, entender se este está dentro do zoneamento ambiental correto.
— O município tem que ter uma lei de ocupação e uso de solo correta, de acordo com o que dispõe a Política Nacional de Meio Ambiente, e entender que esse empreendimento vai estar respeitando todas as fragilidades locais e, principalmente, levando em conta as comunidades locais — ressalta a advogada.
Por esse motivo, o papel dos municípios é fundamental, para além da PEC, uma vez que já há um problema grave ambiental envolvendo o desenvolvimento imobiliário nas regiões praianas.