Aos 64 anos, o glaciologista gaúcho Jefferson Cardia Simões, uma das maiores autoridades mundiais em estudos de testemunhos que a história deixa no gelo, revela ter uma preocupação: teme não ter uma nova geração de cientistas brasileiros para deixar o seu legado de pesquisas relacionadas à Antártica. Primeiro brasileiro a ser treinado especificamente para o programa antártico do país, Simões foi reeleito para mais quatro anos como vice-presidente do Scientific Committee on Antarctic Research (Scar), parte do Conselho Internacional para Ciências (ICSU), e hoje é vice-pró-reitor de Pesquisa na UFRGS. Recentemente, liderou a maior expedição nacional ao interior da Antártica. Foi a sua 26ª missão ao continente gelado. Garante ter sido a última. No próximo ano, ele completará 40 anos dedicados ao estudo antártico, já pensando na aposentadoria e na possibilidade de se dedicar a escrever livros. Nesta entrevista, fala sobre a missão mais recente, a importância do continente gelado para o mundo e como as mudanças climáticas vão afetá-lo.
O senhor afirma que a Antártica é tão importante quanto os trópicos para a questão das mudanças climáticas globais. Fale mais sobre essa importância, por favor.
Se formos para a Antártica e examinarmos o papel que ela tem dentro do ambiente brasileiro, vamos ver que ela é responsável pelas frentes frias que chegam aqui (no Brasil). O pessoal esquece que essas frentes frias que vêm do oceano Austral, ao redor da Antártica, chegam até o Acre. Há 40 anos não se sabia, mas hoje sabemos que está relacionado com a variação do mar congelado ao redor do continente antártico. Temos o continente, que é o centro, e ao redor há um cinturão de mar congelado que pulsa entre o inverno e o verão. Este é o fenômeno ambiental de maior variação sazonal do mundo. O cinturão de mar congelado ao redor da Antártica vai de 2 milhões a 20 milhões de quilômetros quadrados, quase três vezes a área do Brasil, no oceano Austral, ou Antártico. Quando há mais gelo cobrindo o oceano, mais frio está, mais frentes frias se formam e mais elas vão avançar sobre a América do Sul. O que nós estamos começando a desconfiar é de que, conforme o oceano aqueça, teremos menos formação de gelo marinho e as frentes frias terão mais dificuldades de penetrar sobre a América do Sul, gerando mudanças nos padrões do clima. A Antártica tem papel essencial na variação do nível médio dos mares, que é controlada principalmente pela variação da massa de gelo do planeta. Antártica tem 90% do gelo do planeta. Se 1% desse gelo derretesse, o nível do mar aumentaria 60 centímetros. Lembro que, se colocássemos todo o gelo da Antártica nos 8,5 milhões de quilômetros quadrados do Brasil, teríamos uma camada de três quilômetros homogênea. Algumas partes das plataformas de gelo (partes flutuantes do grande manto de gelo que cobre o continente) começaram a se retrair, e estamos encontrando uma série de organismos que não se sabia que existia nelas e em torno delas, por exemplo, anêmonas crescendo de cabeça para baixo fixadas no fundo do gelo. Isso mostra que ainda conhecemos muito pouco sobre certas partes do planeta. Então, tudo isso mostra a relevância atual da Antártica. Se entrarmos no tempo geológico, a Antártica foi o centro do supercontinente que chamamos de Gondwana (o isolamento da Antártica começou quando se separou desse antigo supercontinente há aproximadamente 180 milhões de anos e seu resfriamento ocorreu nos últimos 35 milhões de anos). Fósseis também que estão na Antártica são encontrados na depressão central do Rio Grande do Sul. Em Mariana Pimentel (a 90 quilômetros de Porto Alegre) encontramos a mesma paleoflora encontrada em partes da Antártica. Tudo está conectado. Um dos objetivos dentro do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) é inclusive entender o papel da Antártica na evolução das bacias sedimentares do Atlântico Sul, o que vai levar à questão do pré-sal, aos recursos minerais na plataforma continental brasileira.
O aumento do nível do mar já está ocorrendo?
Sim, já está ocorrendo. O nível do mar está aumentando cerca de 9 milímetros por ano. O que ocorrer na Antártica implicará na variação do nível do mar global. E isso afeta a costa brasileira.
E como está esse trabalho específico dentro do Programa Antártico Brasileiro?
Há 40 anos, as pessoas não tinham noção da relevância da Antártica no passado e no presente do Brasil. A questão Antártica começou a ter um papel maior, principalmente com o surgimento das mudanças climáticas globais. Assim, a questão ambiental é essencial no Proantar. Não podemos esquecer a questão política da decisão do futuro de cerca de 7% do planeta Terra, que é regido por um regime jurídico diferenciado: o Tratado da Antártica. Não sabemos se esse tratado um dia acabará porque não existe nada dizendo que ele tenha uma data de vigência. Mas ele pode ser revisado a qualquer momento, dependendo do número de países que o firmam. Hoje, 29 países têm direito a voto, e o Brasil é um deles. Um dos artigos do tratado deixa bem claro que um país sem programa científico constante e pertinente pode perder o direito ao voto. É uma vantagem para a comunidade científica termos esse papel político dentro desse sistema.
O senhor acabou de liderar uma missão ao interior do continente antártico, que, além de pesquisadores da UFRGS, contou com cientistas de outras universidades brasileiras. Pode falar sobre essa pesquisa?
Ao longo de 36 dias, ficamos acampados e enfrentando temperaturas de até -24°C e nevascas. Foram realizadas investigações sobre a história do clima, com coleta de amostras de neve e gelo precipitadas ao longo dos últimos 400 anos e medições sobre a resposta das geleiras às mudanças do clima. O mais importante é que foi instalado o módulo Criosfera 2, laboratório automatizado para coleta de dados ambientais. O Criosfera 2 foi instalado em um sítio propício para a investigação das mudanças climáticas na Antártica e suas conexões com o tempo meteorológico e o clima no sul do Brasil. Ele está ligado a uma rede de dados ambientais entre a Amazônia e a Antártica, importante para investigar as origens e a intensificação de eventos extremos como tempestades severas, estiagens, ondas de calor e frio, no atual cenário de mudanças climáticas. O módulo Criosfera 2 está localizado em cima de uma calota de gelo – Skytrain Ice Rise, de 600 metros de espessura de gelo, ao sul do mar de Weddell, com vista para a montanha mais alta da Antártica, o maciço Vinson, de 4.897 metros de altitude. A temperatura no Criosfera 2 durante o inverno deve cair a -50°C. É a partir dessa região que as massas de ar frio provenientes do platô polar abastecem o mar de Weddell (no oceano Austral) no inverno e são responsáveis na intensificação eventos extremos e ondas de frios no sul do Brasil. Estamos tentando entender a circulação atmosférica no extremo sul do Brasil. Parte das frentes frias que chegam no Rio Grande do Sul são formadas no mar de Weddell e, quando chegam na latitude do Uruguai, dobram para Oeste e entram no Estado. O objetivo final é melhorar os modelos e cenários de previsão climática, de meses a alguns anos de previsões. Se aquecer este mar de Weddell, como serão as frentes frias que chegam ao Rio Grande do Sul?
Como ocorreu a escolha para instalar o Criosfera 2 na Antártica?
Basicamente por questões logísticas. Mas, quando chegamos lá foi a beleza. Vê-se uma cadeia de 360 quilômetros de montanhas (Ellsworth). É um ambiente extremamente agressivo, não tem nada. A fauna e a flora ficam na costa, a centenas de quilômetros. E é seco. Aliás, em algumas partes da Antártica cai menos neve do que água no Saara, mas nunca derrete. Tivemos que comprar roupas especiais, pois as roupas para a região onde está a Estação Comandante Ferraz não nos servem, já que é relativamente quente por lá (temperatura média ao redor de -3°C). Ali é possível colocar a mão no gelo e trabalhar. No nosso acampamento (na geleira da ilha Pine), o gelo está a -30°C, e tínhamos que amostrar o gelo. Ou seja, a cada 10 minutos era preciso tirar a luva, colocar a mão no bolso para não congelar.
Esta foi a sua 26ª missão na Antártica como pesquisador. O que o senhor já percebeu de mudanças no ambiente e no clima antártico desde a sua primeira ida, na década de 1980?
A parte periférica da Antártica está mudando totalmente. O que estamos vendo: geleiras retraindo, ilhas que estão esverdeando porque estão aparecendo mais líquens, musgos e, inclusive, gramíneas. O aquecimento atmosférico regional derrete o gelo. Derretendo o gelo, as geleiras recuam. O colapso das plataformas de gelo é mais pronunciado desde 1992. Mais de 30 mil quilômetros dessas plataformas sumiram. Uma estação argentina que ficava a 25 quilômetros da costa hoje está na praia porque sumiu a plataforma de gelo que tinha quase 200 metros de espessura. E o mar está ficando mais quente. Tendo menos mar congelado no inverno, surgem mais micro-organismos e vegetação. Estamos vendo algumas espécies estranhas penetrando na região antártica, como micro-organismos e uma expansão dos campos de gramíneas. Algumas espécies de pinguins e peixes já estão migrando para o Sul. O oceano Austral está se modificando, pela absorção do excesso de gás carbônico que lançamos na atmosfera.
O senhor comentou que o Brasil está começando a se interessar pelas consequências do aquecimento global no Ártico. O que já está ocorrendo por lá e como isso pode influenciar no mundo?
O Ártico é uma questão mais ampla porque envolve desde antropologia e etnias, tem 4 milhões de habitantes, e até geopolítica. Começamos a ver os primeiros sinais das consequências da rápida redução do mar congelado ártico nas regiões temperadas e possivelmente nos trópicos. A cobertura de gelo marinho está desaparecendo numa velocidade muito grande. Lá, está claro o sinal: a área média coberta de mar congelado no auge do verão caiu de de 7 milhões para 3,5 milhões de quilômetros quadrados de gelo em menos de 20 anos. Isso tem, inclusive, mudado a estratégia das marinhas dos países árticos, principalmente EUA e Rússia. Novas rotas marítimas via Ártico estão se abrindo, e temos que avaliar as consequências para o comércio internacional. No Brasil, inclusive, já saiu uma resolução para começarmos a ter um maior envolvimento na questão ártica. Estamos olhando de forma teórica ainda. Mas, no novo plano de ação do Programa Antártico Brasileiro, para os próximos 10 anos já há indicação para termos pesquisas árticas, principalmente explorando teleconexões das variações ambientais no ártico e as consequências nos trópicos. Hoje, estamos nos questionando sobre quando vamos começar a ver os sinais mais claros do derretimento do mar congelado ártico, afetando, inclusive, a precipitação na Amazônia.
O Rio Grande do Sul está atrasado. Precisamos saber quais as consequências para a planície costeira gaúcha com o aumento do nível do mar esperado para os próximos 30 a 80 anos. Temos cenário de aumento de até 1m20cm nos próximos 80 anos. Isso terá consequências sérias no urbanismo litorâneo. A frente da linha costeira gaúcha não será a mesma.
Esse degelo, tanto da Antártica quanto do Ártico, terá consequências globais, mas pode haver situações diretas ligadas ao Rio Grande do Sul?
Precisamos questionar quais são as consequências das mudanças climáticas globais para o ambiente, a sociedade e a economia gaúcha? As mudanças climáticas são inevitáveis e estão ocorrendo, mas nós não regionalizamos o cenário. O Rio Grande do Sul está muito atrasado. Precisamos saber quais as consequências para a planície costeira gaúcha com o aumento do nível do mar esperado para os próximos 30 a 80 anos. Temos cenário de aumento de até 1m20cm nos próximos 80 anos. Isso terá consequências sérias no urbanismo litorâneo. Note que esse é um dos motivos pelo qual cientistas brigam com prefeituras que insistem em remover dunas. Sabemos o que vai acontecer, sabemos do dinamismo da planície costeira. Não sabemos se vai ser 30cm ou até 1m20cm de aumento do nível do mar, mas vai acontecer. Lembro que não é só o derretimento de parte da Antártica, mas principalmente da Groenlândia e de várias geleiras do mundo que está contribuindo para o aumento do nível do mar. Outra questão relacionada ao Estado é investigar o que vai acontecer com a redução da penetração de frentes frias. Já estamos vendo mudanças no padrão da distribuição de precipitação no Rio Grande do Sul. O norte do Estado já apresenta aumento de precipitação, mas está ocorrendo aumento de eventos extremos, que passam rapidamente. E mais eventos de estiagem, ainda que não mude a média. A temperatura também está mudando. Com isso, vão ter que mudar alguns cultivares, expandindo uns e diminuindo outros. Mas aqui faltam estudos. Isso precisa de políticas públicas. Já soou o alerta há muito tempo: temos que investir.
Com esse cenário, as próximas gerações viverão num Rio Grande do Sul diferente em relação ao clima?
Temos de pensar que a geração dos meus netos viverá em um Rio Grande do Sul 2°C mais quente, ou mais, com uma distribuição de precipitação diferenciada. É preciso entender que, a partir de agora, os recursos hídricos podem ser limitados, pois não são infinitos. O Brasil tem o maior superávit hídrico do mundo, mas isso não é distribuído homogeneamente e mudará conforme essas mudanças climáticas. A frente da linha costeira gaúcha não será a mesma, pode ser algumas dezenas ou centenas de metros mais para dentro. Eu não construo e não compro casa na primeira quadra de praia! Além das variações naturais, o nível continuará a aumentar, afetando o litoral, cedo ou tarde. E certamente a geração dos meus netos viverá com maior frequência de eventos climáticos extremos, com custos socioeconômicos mais elevados.
Os constantes cortes financeiros atrasaram a ciência brasileira em, no mínimo, cinco anos. A nova geração de cientistas foi muito afetada. vai haver falta de pessoas habilitadas cientificamente. houve uma política de destruição, e nós vamos pagar muito caro.
Como, afinal, é ser cientista no Brasil?
Nos últimos quatro anos tivemos um negacionismo proposital contra o conhecimento científico, no caso das vacinas, das mudanças do clima e da Amazônia. Os constantes cortes financeiros atrasaram a ciência brasileira, no mínimo, em cinco anos. A nova geração de cientistas foi muito afetada. Estamos pagando R$ 4,1 mil para um pós-doutor de 31 anos. Consequentemente, temos fuga de cérebros no Brasil. Os países estão reconhecendo os nossos cientistas, e eles estão indo embora. Não temos como segurar. Eu não perdoo os últimos governos porque esse tipo de atitude lesa a pátria. Vai haver falta de pessoas habilitadas cientificamente. Houve uma política de destruição, e nós vamos pagar muito caro. Vai ter um impacto muito grande na sociedade brasileira. É preciso melhorar os valores das bolsas, entender que as atividades de ensino e pesquisa andam juntas e valorizar as universidades brasileiras.