Uma das equipes da missão Criosfera 2, na Antártica, concluiu os trabalhos em 28 de dezembro. Dos seis pesquisadores que integravam o grupo, somente o vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jefferson Cardia Simões, que lidera toda a missão, segue em solo antártico. Agora, ele está reunido com outros quatro cientistas para a instalação de um módulo de pesquisa da universidade. Em relatos enviados por e-mail à reportagem de GZH (confira mais abaixo), Simões contou como foram os dias mais recentes, incluindo a experiência num acampamento que recebe de cientistas a turistas e o cardápio da véspera de Ano-Novo.
A função do grupo de Simões, que já deixou a Antártica — agora, seguem duas equipes de pesquisadores em pontos diferentes do continente antártico — foi coletar amostras de neve e gelo que acumularam desde o início da revolução industrial.
Depois de deixar a Geleira Pine Island (Ilha de Pine), Simões passou um dia num acampamento que acolhe de cientistas a turistas. Ele partiu em 30 dezembro para o local onde está instalado o módulo Criosfera 2, a 80km de distância. A viagem de bimotor levou menos de 20 minutos. No local, ele se juntou a três colegas da UFRGS e um colega chileno, que chegaram em 19 de dezembro: o geógrafo, climatologista e professor Francisco Eliseu Aquino, a geógrafa e pós-doutorada Venisse Schossler, o geógrafo e técnico em geoquímica Isais Ullmann Thoen e o engenheiro mecânico chileno Marcelo Arrevalo. A missão desta equipe a qual Simões passou a integrar é completar a implantação do módulo Criosfera 2.
Segundo Simões, o Criosfera 2 é um container de 2,5 x 6 m repleto de sensores que medem as condições meteorológicas e concentração de CO2. Ele está no topo de domo de gelo, chamado Skytrain Ice Rise (colina de gelo Skytrain).
— Estamos no início da plataforma de gelo Weddell. Plataformas de gelo são extensas partes flutuantes do manto de gelo antártico. São continuação do próprio manto de gelo, que flui do interior para a costa antártica muito lentamente e podem ter mais de 1.000 metros de espessura. Ou seja, não são parte do mar congelado que rodeia o continente antártico. O fim da plataforma de gelo Weddell, e o início do mar, está a 700 quilômetros ao norte do Criosfera 2 — explica Simões.
A colina Skytrain é, na verdade, um domo sobre uma ilha, explica o cientista. O Criosfera 2 e as três barracas do acampamento estão sobre mais de 600 metros de espessura de gelo.
— A paisagem daqui é totalmente diferente da monotonia do deserto branco da geleira da Ilha Pine (Pine Island). Quando olho de noroeste para sudoeste, vejo toda a cadeia de montanhas Ellsworth, cerca de 360 metros de extensão. E a noroeste, a 210 quilômetros de distância, o majestoso maciço Vilson, o ponto mais alto de toda a Antártica com seus 4.892 metros de altitude. Para o setor de nordeste a sudeste a superfície quase plana de nosso domo de gelo e depois a plataforma de gelo Weddell — conta Simões.
De acordo com o pesquisador, a temperatura média do ar no local chega a "ser agradável". Não sendo mais preciso o uso de dois pares de luvas, necessários na geleira da Ilha Pine.
— Acreditem, na Terra temos gelo frio que pode estar a -60°C. Na geleira da Ilha Pine estava a -30°C e gelo “quente”, próximo de zero graus! Aqui no Criosfera 2 está ao redor de -15°C. À tarde, a -7°C e sem vento, dá para sentar fora das barracas e tomar sol — comenta Simões.
Na véspera de Ano-Novo, os pesquisadores se reuniram na barraca-cozinha por volta das 22h para ceiarem o seguinte menu: bruschetta, guacamole, pão ciabatta ao forno e de sobremesa pavê Thoen (um doce em camadas de bolachas, creme de leite, leite condensado, doce de leite, chocolate - deixado do lado de fora da barraca para congelar). As bebidas foram vinho de caixa, cervejas, um licor Jack Daniels Tennessee Honey, e para a virada um prosecco Chileno.
O objetivo geral da missão, que deve ficar na região até a terceira semana de janeiro de 2023, é investigar as consequências das mudanças do clima para a Antártica e para a América do Sul. Esta já é considerada a maior expedição brasileira feita no interior do continente. O trabalho utilizará tratores polares e aviões com esquis para locomoção em uma área equivalente à região sul do Brasil.
Além dos professores da UFRGS, o estudo conta com pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e faz parte do Proantar, coordenado pela Secretaria Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm).
Confira mais curiosidades relatadas por Jefferson Simões sobre como tem sido a vida na Antártica:
A ida
"Ir à Antártica em uma missão científica e acampado exige uma longa e árdua preparação ao longo de um ano. Preparação da logística, luta constante contra a burocracia governamental (risíveis como quando o Ibama perguntou quais animais iriam puxar nossos trenós...), exames médicos, flutuação do dólar.... Quando estamos prontos para embarcar para a Antártica já estamos esgotados. No entanto, persistimos em retornar ao deserto branco, num misto de obsessão e compromisso individual à ciência e/ou com a nação."
Na Antártica
"Acampados, são dias de constante frio, mãos e pés gelados mesmo com as melhores roupas, um a dois meses sem banho. E o pior: a longa monotonia nos dias de mal tempo. Pode ser dias, e eu, uma vez, fiquei 10 dias indo da barraca dormitório a cozinha. Podíamos ler e ouvir músicas, mas era só. Hoje podemos levar alguns vídeos. Mesmo assim, pode ser muito chato."
A missão
"A primeira fase da missão na geleira da ilha Pine foi um sucesso para a coleta de dados, mas muito desgastante devido a um verão muito frio. Foi duro manejar peças de metal de equipamentos que, muitas vezes, estavam a -30°C (temperatura do gelo no local do acampamento), uma tempestade atrapalhou mais ainda. Assim, todos desgastados, algumas mãos e pés machucados, algumas queimaduras leves por frio (e pontas dedo das mãos, consequentemente, dormentes). Assim, decidimos que só eu ficarei na Antártica para se juntar ao grupo que está no Criosfera 2. Os demais colegas começaram a voltar para o Brasil."
Novo acampamento
"Dia 28, à noite, desmontamos acampamento na Geleira da Ilha Pine (Pine Island) e às 2h30min da madrugada do dia 29 já estávamos no acampamento base da Antarctic Logistic Expeditions - ALE, a única companhia comercial que apoia expedições, montanhistas e mesmo programas nacionais antárticos nesta parte do Planeta. Existe outra do outro lado da Antártica."
Banho a cada quatro dias
"O acampamento da ALE é um “spa” para quem estava acampado. Temperatura é 10°C mais quente, os agradáveis -5°C, tem um refeitório e o luxo máximo: banheiro e um local para tomar um banho a cada quatro dias. Mas em geral tomamos um banho só ao chegar aqui. É estranho, mas após o banho sempre nos sentimos que ficamos mais sensíveis ao frio. E se você vai para um novo acampamento, vai levar alguns dias para se readaptar."
Príncipe no bar de Star Wars
"As pessoas que circulam pelo acampamento da ALE são muito diversas. Brincamos que é como um dos bares da série Star Wars...hehe..de montanhistas renomados ou amadores, alguns sem alguns dedos das mãos (perdidos por congelamento em escaladas anteriores), cientistas indo para algum lugar distante para investigações glaciológicas e geológicas, ou procurando meteoritos no gelo antártico, turistas que pagam até U$ 60 mil por pessoa para fazer algum programa de turismo de aventura. A ALE oferece pacotes (esqui até o Polo Sul Geográfico - são 1.200 km de distância, vá ao Polo Sul Geográfico de avião e visite pinguins imperadores no mar de Weddell - também a centenas de quilômetros ao Norte daqui). Por fim, celebridades e multimilionários. Anos atrás, conheci aqui o Príncipe Albert II de Mônaco e apresentei a ele o conhecimento sobre o impacto das mudanças do clima na Antártica."
Motivos de voltar à Antártica
"São vários os motivos, alguns pela oportunidade de enfrentar seus limites físicos e mentais, outros pela admiração da vida selvagem intocada e muito especializada, outros pela parceria com os colegas, outros pelo desafio de sobreviver sob condições limites. Sim, temos o interesse profissional de investigar e entender o papel da Antártica no meio ambiente global, o compromisso de atingir os objetivos propostos aos nossos financiadores (basicamente o erário público, leia-se o povo brasileiro). Mas, talvez, uma das motivações mais importante seja o sentimento de estarmos fazendo algo de vanguarda, quer ao procurar a entender os limites da natureza quanto a intervenção da humanidade, ou mesmo garantido o papel da nação brasileira nas decisões de cerca de 8% da superfície da Terra."