Figueiras centenárias, plantas epífitas, cactos e dunas são alguns dos muitos componentes estranhos à paisagem típica do bioma pampa. No Banhado do Maçarico, em Rio Grande, porém, essa variedade de flora e vegetação existe graças à oficialização do local como unidade de conservação (UC), em setembro passado, após um imbróglio legislativo que envolveu três governos. A área é considerada relevante para a preservação de aves, recursos hídricos e vegetação nativa do pampa – uma das mais desmatadas entre os biomas brasileiros.
Quem vai ao refúgio de vida silvestre do Banhado do Maçarico pode não saber que está nele. Diferentemente da vizinha Estação Ecológica do Taim, não há placas sinalizando a unidade de conservação, tampouco há acessos públicos para o local. Para entrar no refúgio é preciso da permissão de algum dos 21 proprietários de terras da poligonal da UC.
Um estudo recente, divulgado pela rede MapBiomas, apontou que o pampa gaúcho foi o bioma que mais perdeu vegetação nativa nos últimos 36 anos no Brasil, proporcionalmente ao total da sua área. Atualmente, a vegetação original responde por menos da metade (46,1%) do seu território. O principal motivador da perda é o avanço da agricultura, em especial a soja. A estimativa é de que apenas 3% do pampa esteja inserido em unidades de conservação – a menor proporção entre todos os biomas brasileiros.
Segundo Eduardo Vélez, que é biólogo e consultor ambiental e estuda o pampa, cada região do bioma tem suas características próprias. Enquanto na zona costeira, onde se encontra o Banhado do Maçarico, há campos mais úmidos, lagoas costeiras e a presença de muitas aves migratórias, na região da Campanha, por exemplo, há afloramentos rochosos e campos secos, e na Fronteira Oeste, os campos são mais abertos. O pesquisador defende a importância de criar redes de áreas de conservação que deem conta da preservação de toda essa heterogeneidade.
— O pampa está muito atrasado na criação dessa rede. Por outro lado, a gente começa a enxergar uma rede de proteção na zona costeira, que conta com o Banhado do Maçarico, o Taim, Mato Grande, o Delta do Jacuí. São áreas próximas, que podem se conectar, para que as espécies transitem pela região — explica Vélez.
As lavouras deixam “cicatrizes” na terra que não são percebidas nos 6.253 hectares do Banhado do Maçarico – lá, a terra é lisa e o pasto é verde quase sempre. Oficializada como refúgio de vida silvestre, o uso de agrotóxicos e as atividades de agricultura estão proibidos na unidade. Em seu entorno, porém, ainda se vê aviões sobrevoando áreas vizinhas, para distribuir defensivos agrícolas.
Em 2008, a ONG inglesa Birdlife International identificou o local como uma Important Bird Area (área importante para aves). É um conceito baseado na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. Entre as aves ameaçadas de extinção que habitam, ou passam pela região, estão o veste-amarela, o caminheiro-dourado, o caboclinho-de-papo-branco e o tapaculo-da-várzea. Um pássaro comum na área também é o tapicuru, ou maçarico-do-banhado, que inspirou o nome do local.
As marcas da última regressão marinha também fazem parte da especificidade da região. Localizado a mais ou menos 11 quilômetros de distância da costa, o Banhado do Maçarico possui uma variação entre cordões de valetas e campos nativos mais altos, ainda da época em que o mar foi regredindo, milhares de anos atrás.
Imbróglio legislativo
A UC no Banhado do Maçarico foi criada em dezembro de 2014, por meio de decreto, ao apagar das luzes do governo Tarso Genro. Sua delimitação serviria como compensação ambiental para o início da operação do parque eólico Corredor do Senandes, em Rio Grande. Na época, porém, a área foi incluída na categoria “reserva biológica”, que não permite nenhum tipo de interferência humana direta. Como a região é historicamente ocupada por pecuaristas, a atividade e a moradia precisariam ser interrompidas e os proprietários das terras indenizados pelo Estado, em um valor estimado em R$ 130 milhões.
A comunidade local se uniu para questionar a decisão. Por meio da Associação dos Proprietários e Moradores do Banhado do Maçarico, foi criado um grupo de trabalho que apresentou um estudo ambiental para defender que a região poderia entrar na categoria “refúgio de vida silvestre” – que também prevê uma proteção integral da natureza, mas permite atividades humanas que não interfiram nos seus recursos naturais, como a pecuária sustentável.
Em 2018, o então governador José Ivo Sartori acatou a tese do grupo e, também por decreto, recategorizou a unidade como refúgio de vida silvestre. Para ser válida, no entanto, a mudança precisaria passar por análise da Assembleia Legislativa. Por isso, em 2021, o governo Eduardo Leite enviou à Casa um projeto propondo a alteração, que se tornou lei, publicada no último dia 25 de setembro.
— É uma mudança muito positiva, porque põe fim a uma insegurança jurídica que os produtores tinham na região — relata Thiago Damas, um dos proprietário de terras no Banhado do Maçarico.
Produtor rural e ambientalista, Eduardo Peixoto tem parte de sua propriedade dentro da unidade de conservação. Mesmo antes da exigência de proteção integral, Peixoto afirma que já buscava promover a sustentabilidade na área, por entender que a preservação traz ganhos até mesmo para a pastagem em si.
— Tenho mais de 80% de área nativa na minha estância. Em vez de achar ruim a criação de uma unidade de conservação, é muito melhor pensar em como isso pode trazer benefícios para o seu próprio campo — defende o produtor.
Projetos sustentáveis da comunidade local
A formalização da área como refúgio de vida silvestre também animou o secretário municipal de Meio Ambiente de Rio Grande, Pedro Fruet. Em parceria com Peixoto e outros produtores locais, o município está desenvolvendo projetos de promoção da sustentabilidade no Banhado do Maçarico, como a polinização, por meio de abelhas sem ferrão, e o melhoramento dos campos nativos.
— São dois projetos embrionários que já estão ganhando corpo. Com a polinização, queremos impulsionar o desenvolvimento de emprego e renda na região e também trazer benefícios para os produtores que aqui estão, em harmonia com a conservação da biodiversidade — destaca Fruet.
Eduardo Peixoto salienta, ainda, o potencial turístico da preservação da região. Ele estuda construir torres de observação de aves em sua propriedade, mas acredita que a segurança para investimentos como esse vem de políticas públicas que mudem a cultura local.
— Falta uma visão estratégica sobre como melhorar essa área, observando não só o quesito ambiental, mas social e econômico também. É estudando que tu começas a gostar da região e a querer preservá-la — defende o pecuarista.
O biólogo Eduardo Vélez também destaca o potencial de geração de renda que uma unidade de conservação oferece para a comunidade local. Ele cita o Parque Nacional de Aparados da Serra, onde fica o Cânion Itaimbezinho, que atraiu turistas para a região e ajudou a desenvolver Cambará do Sul.
— Em geral, os proprietários de terras nessas regiões são muito reativos a criar unidades de conservação. Nunca é fácil ou harmônico. Mas, se tu fores comparar Cambará do Sul hoje e 30 anos atrás, vais ver como a cidade se desenvolveu, tem hospedarias, restaurantes, porque as pessoas querem ir lá, olhar a natureza, as aves — cita Vélez, sugerindo que no pampa se façam deques ou torres de observação, para assistir à paisagem de cima.
Plano de manejo
O próximo passo, após a oficialização da área como refúgio de vida silvestre, é a elaboração de um plano de manejo, que delimitará, por exemplo, a zona de amortecimento ou corredor ecológico – faixas de proteção ao redor das unidades de conservação, com restrições de atividades – e quais os níveis máximos de intervenção humana no local, bem como possibilidades de atividades de educação ambiental na região.
O prazo para a conclusão do plano de manejo é de até três anos, mas, como a comunidade local tem se envolvido no debate, o diretor de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Ambiente e Infraestrutura (Sema), Diego Pereira, acredita que a finalização poderá se dar antes. O documento é elaborado por um conselho consultivo que, hoje, é constituído por 17 instituições públicas e privadas.
— A legislação prevista para o refúgio de vida silvestre dá algumas ideias mínimas básicas, mas o plano de manejo deixará mais claros alguns pontos específicos, como as atividades possíveis na zona de amortecimento — relata Pereira.
A Sema pretende, ainda, criar estímulos para a produção de pecuária extensiva sustentável no local. Segundo o diretor de Biodiversidade, a UC dispõe de R$ 2,4 milhões depositados em juízo, oriundos de medidas compensatórias de grandes empresas, que serão destinados à implementação do refúgio de vida silvestre, a projetos científicos e outras atividades que promovam a preservação. Outra possibilidade é o programa Campos do Sul, que certifica boas práticas ambientais no manejo pecuário, oferecendo um “selo verde” aos produtores.
A gestão e a fiscalização do Banhado do Maçarico serão feitas por servidores do Estado que já atuam em outra UC localizada na região – a reserva biológica do Mato Grande, em Arroio Grande. A equipe é formada por guarda-parques e dois técnicos.