O pioneirismo do Rio Grande do Sul na defesa ambiental nasceu em um escritório na Avenida Borges de Medeiros há 50 anos, antes mesmo de ONGs como o Greenpeace chegarem ao Brasil. Criada em 27 de abril de 1971 por nomes como José Lutzenberger e Augusto Carneiro, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) foi crucial na luta contra os agrotóxicos, no combate à caça e pesca ilegais, na demarcação e proteção dos parques estaduais e até mesmo em pautas nacionais, como as fortes denúncias à devastação causada pela Rodovia Transamazônica.
A manchete do jornal Folha da Tarde anunciava a fundação de “uma associação para evitar o envenenamento coletivo”. Isso foi muito tempo antes da expressão ambientalismo chegar ao Brasil, mas a luta é a mesma até hoje.
— Estamos vivendo os piores retrocessos ambientais em 50 anos de história. Mas, para ter força para brigar, é preciso saber festejar — destaca o presidente da Agapan, Francisco Milanez, há 49 anos na entidade.
A passagem da data será marcada por um evento virtual às 19h desta terça (27) no canal da associação no YouTube. A live deve relembrar as conquistas da entidade, que teve como uma das primeiras batalhas o caso Borregaard.
A terceira maior indústria de celulose do mundo foi instalada em Guaíba um pouco depois da criação da Agapan, sem sequer ter alvará. Um duto de dois quilômetros saía da planta industrial e mergulhava na água que abastece a Capital, onde lançava até 600 metros cúbicos de rejeitos por hora, incluindo fibra de celulose, compostos inorgânicos insolúveis e material orgânico. Mas o que ainda marca a memória da população de Porto Alegre é o cheiro de ovo podre exalado pela chaminé em direção à Zona Sul e, dependendo do vento, ao centro da cidade, capaz de provocar mal-estar e dores de cabeça.
Com forte campanha da Agapan e da imprensa, o governo determinou o fechamento da Borregaard por três meses para que fossem cumpridas medidas mínimas de controle. Após mudar de controle acionário diversas vezes, a antiga indústria passou a se chamar CMPC Celulose Rio-Grandense, e hoje precisa obedecer a critérios mais rigorosos de segurança. O episódio ficou marcado como um símbolo da luta ambiental no Estado, e acabaria dando sustentabilidade técnica para fazer exigências também aos curtumes, que não tinham tratamento primário.
Entre as bandeiras hasteadas hoje, a Agapan combate o projeto de instalação de uma mina de carvão a céu aberto na Região Metropolitana (Mina Guaíba) e, novamente, se envolve na questão dos agrotóxicos ao condenar o PL 260/2020, em tramitação na Assembleia Legislativa. O governo do Estado quer que os deputados votem com urgência o projeto que permite o cadastro de agrotóxicos obsoletos sem autorização de uso no país de origem.
Talvez sem a mesma projeção que tinha no passado, a Agapan admite grandes restrições financeiras, e está há cinco anos sem sede. Francisco Milanez destaca que a associação não tem financiamento público ou patrocinadores e que todo o trabalho é voluntário.
— A gente é pobre, mas nenhuma ONG jamais teria condições de pagar o salário dos membros que nós temos, que são gente de altíssimo nível. Por isso que a Agapan é sempre tão respeitada — diz o presidente.
Como o interesse pelo nudismo marcou o começo da Agapan
A Agapan foi fundada por professores universitários, ligados principalmente aos cursos de biologia e agronomia, advogados, jornalistas, membros da extinta União Protetora da Natureza, do já falecido Henrique Roessler, entre outros. Mas o que nem todos sabem é que o embrião da entidade foi o interesse pelo nudismo.
Em uma pesquisa sobre a Agapan, a doutora em História Elenita Malta Pereira revela que a trajetória começou em agosto de 1970, quando Lutzenberger era executivo da multinacional agroquímica Basf, em Marrocos. Ele vivia um drama de consciência porque a empresa tinha começado a fabricar agrotóxicos — que viraria depois um dos alvos do seu ativismo.
Em viagem a Porto Alegre, sua terra natal, foi convidado a participar de um jantar com Juarez e Hilda Zimmermann, Tácito e Cirdes Heit, e outros casais, como Augusto Carneiro e Dalila.
Juarez retornara de um estágio de estudos em Direito na Alemanha entusiasmado com o movimento naturista, do qual Tácito também era adepto, e Lutzenberger costumava frequentar praias nudistas na Europa com a esposa. O convite era para tratar dessa prática de ficar sem roupa, como apurou Elenita: Heit, Juarez e Carneiro queriam fundar um movimento naturista no Rio Grande do Sul.
Lutzenberger, entretanto, foi contra.
— Não adianta nós querermos fazer naturismo, se em cada área em que nós chegamos, os locais estão cada vez mais degradados. Vamos primeiro preservar o ambiente natural, para depois, então, ter onde fazer o naturismo — defendeu o engenheiro agrônomo.
Já dava para ver as obras da fábrica de celulose às margens do Guaíba avançando, e Lutzenberger sabia do seu potencial de poluição.
— Ele sabia que isso poderia contribuir para tornar impossível qualquer tipo de banho no rio, naturista ou não. E foi naquele mítico jantar se criou a sementinha da Agapan — pontua Elenita.
No dia seguinte, Lutzenberger viajou para a Alemanha para pedir demissão da Basf, e, em novembro de 1970, Carneiro publicou carta no jornal Correio do Povo convocando quem estivesse interessado em tomar parte da defesa ambiental. O dia 27 de abril de 1971 foi quando ocorreu a primeira reunião, na sede da Sociedade de Agronomia do Rio Grande do Sul. Elenita contará essa história em vídeo a ser lançado na quinta-feira (29) no canal Lutz Global no YouTube .
Presidente nos 12 primeiros anos da Agapan, Lutzenberger já alertava em entrevista publicada em 31 de maio de 1971 em ZH: “Estamos a um minuto da meia-noite. Se não tomarmos cuidado, o mundo ficará inabitável. É necessário despertar a população e as autoridades para o problema vital causado pelo uso indiscriminado e irresponsável do nosso ambiente natural, se não quisermos que nossos filhos vivam uma realidade caótica”.
O discurso segue atual neste momento de desmonte de órgãos ambientais e denúncias de retrocessos sob a gestão do ministro Ricardo Salles. O agroecologista Carlos Alberto Dayrell, 68 anos, que conviveu com muitos dos fundadores da Agapan na década de 1970, não tem dúvidas:
— Se Lutzenberger, Hilda e Carneiro estivessem vivos, com certeza a gente estaria mais forte e fazendo mais barulho.