Ailton Krenak carrega a identidade de sua etnia no sobrenome. Originários do Sudeste e hoje restritos a pequenas reservas em Minas Gerais, os crenaques – ao menos os da aldeia de Ailton – estão em um isolamento exemplar, evitando contato com os brancos, o que é essencial para se preservarem do coronavírus. A baixa imunidade dos povos isolados é sempre lembrada quando se fala na ameaça da covid-19. Mas, para este que é um dos principais líderes indígenas do país e, desde o ano passado, best-seller literário (graças ao livro ensaístico Ideias para Adiar o Fim do Mundo, lançado em 2019 pela Companhia das Letras), a reflexão sobre as relações entre esses povos, a natureza e os não indígenas só pode ser vista sob uma perspectiva histórica mais ampla.
– Sobrevivemos a muitas ameaças em 500 anos. Não sei como os brancos sobreviverão ao atual momento – ele declara, em um discurso alarmista mas que também carrega algum otimismo:
– Não tem como isso tudo passar e não sairmos menos individualistas.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone desde sua aldeia, no interior mineiro, explica o que chama de “guerra híbrida” na preservação das culturas indígenas e relembra um episódio emblemático dessa luta: quando, na Assembleia Constituinte de 1987, pintou o rosto de preto e fez um discurso que comoveu o país – e ajudou a aprovar o marco constitucional para as relações entre o Estado, a sociedade e os índios (veja o episódio aqui).
O senhor tinha 33 anos na Assembleia Constituinte de 1987. Hoje, tem o dobro: 66. O que mudou na situação dos povos indígenas do país nesse período?
Aquele momento foi o auge da experiência de mobilização social pela redemocratização do Brasil. Toda a sociedade estava envolvida na nova Constituição, era um momento promissor. Mas, olhando em perspectiva, constato que desde então descemos a ladeira em desabalada corrida. Aos poucos as mobilizações foram diminuindo e a sociedade passou a olhar a questão com menos vigilância, até que afundamos vertiginosamente em um pântano em que a própria noção de cidadania foi dissolvida. Hoje vemos pessoas muito despreparadas ocupando cargos nos poderes da nação, no Legislativo, nos Executivos de vários Estados. Conseguem se eleger como representantes do povo apontando carabinas para o próprio povo, o que sugere que a ideia de cidadania foi vencida no Brasil. É como se não tivéssemos mais poder nenhum com nosso voto.
O senhor diz isso pensando nos indígenas ou na população como um todo?
É impossível pensar o direito dos povos indígenas sem olhar para o que os cerca, sem considerar a sociedade como um todo. Falar em direito dos povos indígenas inclusive é algo que foi criado no contexto da civilização que chamamos de ocidental, branca. Nós nos inscrevemos no processo de elaboração da Constituição – e nesse contexto eu fiz aquele discurso – porque estávamos na expectativa de criar uma sociedade democrática em que todos fossem ouvidos. Infelizmente, não somos mais. Nós e outras parcelas da população que não estão entre os vencedores. Não vejo mais o Brasil como uma nação que pode olhar para si e se enxergar de fato como uma nação. Há muito desrespeito com o que é diferente, com outras culturas. Há uma cultura da violência contra o diferente, muito bem representada pelo presidente da República, que tem como gesto simbólico esticar o dedo como se estivesse apontando uma arma para os cidadãos que estão à frente dele. O presidente chegou a dizer, esses dias (em 20 de abril), que a Constituição é ele. Essa declaração é um escândalo para quem lutou naquele processo da Assembleia Constituinte. O fato de as instituições que deveriam garantir os princípios democráticos não tomarem providências deixa claro como a ideia de cidadania foi vencida no país.
A chegada do coronavírus deixa as populações indígenas, que têm menos contato com os brancos e menos anticorpos, ainda mais expostas. Qual o tamanho da sua preocupação com a preservação desses povos em meio à pandemia?
Curiosamente, esses povos, sobretudo aqueles que estão em aldeamentos em regiões de floresta, estão mais protegidos do que eu, você e quem estiver nos lendo neste momento. Quem não está próximo a uma cidade ou a invasores, grileiros, garimpeiros, quem não tem de disputar suas terras com a soja, pode ficar mais tranquilo. Está protegido pela floresta. O grande problema é o que ocorre, por exemplo, no território ianomâmi (entre o Amazonas e Roraima): no ano passado, o Parque Yanomami foi invadido por 20 mil garimpeiros que estão lá ilegalmente explorando o local. Além do dano ao ambiente, eles levam as doenças. Se não levassem, a pandemia não seria um problema para esses indígenas. Isso se repete em várias áreas. Em outras, como, por exemplo, o Vale do Javari (no Amazonas, região de fronteira entre Brasil e Peru), onde estão os marubos, os matises e os corubos, a situação até que é tranquila. Esses grupos humanos só apareceram na mídia nos últimos seis a oito anos. Sequer temos contato com eles. Eles estão distantes da predação. É o que podemos considerar a situação ideal de isolamento.
Onde há mais risco?
Em inúmeros locais de contato. Letícia e Tabatinga (na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru), Tefé (região do Médio Solimões), Benjamin Constant (entre Tabatinga e o Vale do Javari) e, principalmente, nas proximidades de cidades, como São Gabriel da Cachoeira (AM), Marabá (PA), Manaus (AM). As populações de locais como esses já não vivem mais em harmonia com o ecossistema que integram. Esses povos estão muito ameaçados. Em Altamira (PA) e no entorno da Usina de Belo Monte, quem sobreviveu à tragédia que foi a construção da hidrelétrica (inaugurada em 2011) agora se vê ameaçadíssimo. Precisamos fazer alarde sobre essas populações, e não sobre aquelas que vivem isoladas. Não podemos generalizar. Os indígenas estão em condições de risco diferentes, dependendo da região em que vivem.
E quanto aos indígenas de outras regiões, especialmente os que têm tido contato com os brancos ao longo de mais tempo?
Esses estão praticamente tão sujeitos à covid-19 quanto todos os demais seres humanos vivendo em São Paulo ou Porto Alegre. Os caingangues do Rio Grande do Sul, que estão agora em seus toldos e em suas aldeias: alguns deles convivem secularmente com invasões e arrendamentos, estão em contato com os brancos há muito tempo. Sua situação é evidentemente bem diferente. Mas precisam fazer quarentena, ter cuidados rigorosos.
Se quisermos voltar ao normal depois do que está acontecendo, significará que nos rendemos todos ao negacionismo. Seremos todos terraplanistas. Teremos nos jogado em um abismo ontológico.
Mesmo esses indígenas mais próximos de cidades têm um sentido de comunidade diferente daquele de alguém que vive em um apartamento do centro de Porto Alegre. Como funciona a quarentena nas aldeias?
Veja bem onde estou agora (aponta a câmera do celular para a janela de sua casa). Estou, neste momento, onde moro, dentro de uma reserva crenaque criada nos anos 1920 (no interior de Minas Gerais). Já tivemos muito contato com os brancos, desde as lutas contra os posseiros em décadas e séculos passados até os diálogos mais recentes que resultaram, por exemplo, no isolamento desse nosso território. Neste momento, estamos protegidos. Vivemos em uma aldeia com 130 famílias. Todos aqui estão em quarentena há dois meses. Há apenas dois caminhos de acesso à aldeia, e ambos estão interditados. A covid-19 não entrou aqui. Por isso não precisamos usar máscaras nem álcool gel. Mas, para manter isso, é importante não ter contato com o ambiente exterior. Os indígenas que precisam frequentar o comércio, interagir com outras pessoas, enfim, que têm outro sistema de gestão territorial, precisam seguir procedimentos distintos. Depende de cada comunidade.
O que o senhor acha do plano de ação elaborado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, para proteger os povos indígenas do avanço do coronavírus?
As campanhas em geral nos apresentam como se todos nós, indígenas, fôssemos um grupo homogêneo. Isso não é verdade. Não estamos vivendo um Deus nos acuda generalizado. Não vamos morrer todos de uma hora para outra, não. Do plano da Sesai, eu tomei conhecimento quando o Ministério Público obrigou o governo federal a explicitá-lo. Só que nada do que está escrito está sendo cumprido. Há, ali, um conjunto de recomendações. Mas que não chegam às aldeias, nem aquelas mais próximas das cidades, como a minha, imagina às mais isoladas. Fico pensando como está a assistência aos ianomâmis, sujeitos neste momento à violenta invasão para a exploração do garimpo, ou aos tikunas de perto de Tabatinga, que estão onde já é reportada uma significativa quantidade de indígenas contaminados com a covid-19. Não é a assistência ideal, longe disso. (Na região de Tabatinga, segundo o Ministério da Saúde, já houve quatro mortes de indígenas por coronavírus, mas lideranças locais desses povos afirmam que o Hospital Militar do município classificou outros indígenas mortos como pardos.)
Em manifestação recente, o senhor chegou a afirmar que, do jeito que estão nossas relações com o ambiente, os brancos correm tanto risco quanto os índios. É isso mesmo?
Não foi tão recente assim. Foi em Portugal, em meio à eleição de 2018. Fui instado por uma jornalista a comentar declarações do então candidato Jair Bolsonaro, que ofendeu os índios e disse que não demarcaria mais terras indígenas. Ela me perguntou como sobreviveríamos. Não lembro exatamente o que respondi, mas te digo agora que sobrevivemos a muitas ameaças em 500 anos. E vamos sobreviver a mais esse período terrível. O que não sei é como os brancos, ou os não indígenas como um todo, sobreviverão ao atual momento, porque, além da pandemia, todas as pessoas, toda a sociedade está sob ataque. Naquele momento, mesmo diante daquelas declarações, não dava para imaginar que o governo seria tão cruel como está sendo, a ponto de ameaçar a vida de todos. Seu belicismo é total. As instituições são atacadas a todo instante. O desprezo ao meio ambiente é só uma das facetas. Todos somos atingidos, de alguma forma. Basta entender que fazemos parte de um mesmo universo, de ecossistemas que podem ser diferentes, mas que se relacionam entre si. Não podemos enxergar só o que nosso olhar alcança. O impacto de certas atitudes de desprezo à natureza é global. A pandemia é uma prova disso: foi nossa relação com os animais que trouxe o vírus para a espécie humana, uma relação de dominação desrespeitosa construída ao longo de muito tempo. E, quando deveríamos estar repensando isso, fazemos justamente o contrário, elegendo esse tipo de discurso.
A teoria mais aceita entre os cientistas é de que o coronavírus surgiu de animais silvestres, tendo chegado às pessoas quando estes estavam submetidos a condições muito estressantes em um mercado chinês (leia artigo sobre o tema aqui).
Animais em confinamento, como se fosse uma quarentena forçada – veja a ironia disso. Nós devoramos tudo. Prendemos milhões de animais de todos os tipos, aves, mamíferos, répteis, porque parece que temos de comer tudo. Nós comemos o que está na terra, na floresta, o que se move, o que não se move. Quando visitei pela primeira vez Davi Kopenawa Yanomami, xamã dos ianomâmis que à época – uns 30 anos atrás – vivia de modo muito remoto, ele me perguntou: Krenak, é verdade que os brancos são muitos? Respondi que sim, que são como se fossem todas as estrelas do céu ou todas as árvores da floresta. E ele, horrorizado: mas o que eles comem, tem comida para tantos? Falei a verdade: eles comem de tudo, terra, planta, folha, pau, pedra, todos os bichos. Comem ouro. São devoradores. Ele quis saber se os brancos chegariam aqui, no caso, no território ianomâmi onde ele estava. Falei que sim, que um dia chegariam. Porque estão cobrindo toda a face da Terra, feito uma peste. Te digo que, 30 anos depois, as coisas não mudaram muito.
O senhor tomou conhecimento do manifesto em defesa dos índios lançado pelo fotógrafo Sebastião Salgado em meio à pandemia?
Sim. É elogiável esse esforço de mobilização, para tentar conscientizar as pessoas, levar o problema para outros centros do mundo civilizado. A questão é que o Brasil tem dado passos largos para ele próprio sair desse mundo. Lembro de campanhas com o objetivo de chamar a atenção para genocídios na África. É importante mobilizar as pessoas de outras partes do mundo, o problema é convencer um ditador sanguinário como Idi Amin Dada (presidente de Uganda entre 1971 e 1979) a parar de matar. O efeito prático da campanha acaba sendo bem limitado.
Em outra declaração recente, o senhor classificou a luta pela preservação das culturas indígenas como uma “guerra híbrida”. O que isso quer dizer?
A gente tem de entender que estamos sob uma pandemia, o que torna o contexto mais grave. Estamos diante do caos nas relações entre instituições e as próprias pessoas. Todos com medo, inseguros e sujeitos a mentiras, fake news. O governo brasileiro opera no caos, ele provoca isso porque gosta de se movimentar em meio ao caos institucional. Por isso as medidas são anunciadas e suspensas logo depois, por exemplo. Quando alguém que está no poder sugere que uma terra indígena demarcada não precisa mais ser respeitada, é natural que pessoas a desrespeitem. Até se corrigir, o estrago já foi causado. Da mesma forma fica mais fácil cooptar as pessoas a partir de discursos absurdos, como é o caso de indígenas levados à exploração das terras com a promessa do enriquecimento. Por isso essa ideia do hibridismo: índios são cooptados pelos exploradores. Há uma série de sabotagens em curso. Existe um aparato do Estado brasileiro atuando contra a vida do povo indígena, e isso encontrou com a covid-19 um contexto propício. Não precisaria de uma pandemia para nos liquidar quando garimpeiros fazem o que estão fazendo no Parque Yanomami, mas, quando há a pandemia, o caos encontra o momento propício para se instalar.
Que discursos especificamente sugerem ações contra os povos indígenas e depois são corrigidos? O senhor teria mais exemplos?
Autoridades são nomeadas e depois têm a nomeação cancelada, isso ocorre o tempo todo. No primeiro semestre do ano passado, o governo federal anunciou que os 30 e poucos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) instalados pelo país estavam extintos. Houve uma reação das comunidades e de pesquisadores que fez com que a medida fosse extinta. O Ministério da Saúde mudou de estratégia e reativou os Dseis. Então todos se acalmaram. Só que a verba para os Dseis foi cortada. Então, na prática, esses distritos pararam de operar mesmo. Há outros exemplos dessa política do diz-desdiz que busca a cisânia, o desentendimento geral. Vou dar mais um: os grupos de missionários evangélicos norte-americanos trazidos para a região do Vale do Javari com a autorização do poder público. Eles tiveram de parar de atuar após intervenção do Ministério Público. Mas seguem lá, na região, à espera de poder se aproximar dos indígenas novamente. Você não acha que, neste momento de fragilidade em decorrência da pandemia, levar essas pessoas de fora para uma área onde há índios isolados não é sabotagem?
Sua editora publicou online um texto seu intitulado O Amanhã Não Está à Venda (disponível gratuitamente em sites de livrarias), no qual o senhor diz que devemos perder de vista a ideia de “volta à normalidade” após a pandemia. Em que sentido?
Esse PDF distribuído pela (editora) Companhia das Letras é uma reunião de três entrevistas muito parecidas com esta aqui e que estarão reunidas em uma nova edição do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Serão o posfácio do livro em breve. O que quero dizer com esse raciocínio é que, se quisermos voltar ao normal depois do que está acontecendo significará que nos rendemos todos ao negacionismo. Seremos todos terraplanistas. Porque, se não nos dermos conta, após uma pandemia, de que algo está errado na nossa relação com o ambiente, com os animais e com os demais seres humanos, não acreditaremos que a Terra é o que ela de fato é – redonda, rica em vida, exuberante. Teremos nos jogado em um abismo ontológico.
A desigualdade gigantesca e o aquecimento global já vinham levando muitos a parar para pensar se é necessário ter combustível fóssil, ter carro, buscar a riqueza a todo custo. Nosso individualismo já era contestado por muitos de nós. O que fazemos tem impacto, precisamos pensar sobre esse impacto. Que pensemos agora, que estamos nessa situação extrema.
Nesse sentido, a pandemia é uma oportunidade para repensarmos muitas coisas.
Ver caixões empilhados e corpos sendo jogados em valas comuns precisa ser um momento para repensar as coisas. E a quarentena é propícia para isso. Precisamos, além de nos preocuparmos em quando vamos sair da quarentena, nos questionarmos como vamos sair dela. Não vai ser buscando aquilo que acreditávamos ser o normal. Não é normal seguirmos sendo uma vasta legião de seres que dominam os demais sem se preocupar com o impacto causado. Os pássaros seguem cantando, olha as maritacas (movimenta o celular e mostra a paisagem através da janela), os pés de manga, banana e abacate continuam verdes, tudo está normal. A pandemia é um alerta aos humanos.
No que o senhor aposta que podemos mudar?
Temos de pensar se é justo viver em um mundo em que milhões de pessoas morrem de fome enquanto produzimos alimentos em quantidades nunca antes vistas. Temos de pensar nos outros. A desigualdade gigantesca e o aquecimento global já vinham levando muitos a parar para pensar se é necessário ter combustível fóssil, ter carro, buscar a riqueza a todo custo. Nosso individualismo já era contestado por muitos de nós. O que fazemos tem impacto, precisamos pensar sobre esse impacto. Que pensemos agora, que estamos nessa situação extrema. Acredito que mais gente vai começar a se dar conta. Não tem como isso tudo passar e não sairmos menos individualistas. Tenho essa esperança.