A cena de um urso polar angustiado, ilhado num iceberg cada vez menor — imagem símbolo do impacto do aquecimento global —, poderá se reproduzir com cenário e vítimas diferentes no ponto mais alto do Brasil: o Pico da Neblina, no Amazonas.
Se a temperatura subir na região, explica o zoólogo Ivan Prates, a vegetação densa das áreas baixas amazônicas pode começar a subir a montanha, forçando animais adaptados ao clima frio a buscar refúgio nas áreas mais altas, até que sobre apenas o topo do pico.
Sufocadas pelo aumento da temperatura e pelo avanço de uma floresta onde não são capazes de sobreviver, espécies de sapos e lagartos que só existem na região - e que surgiram milhões de anos antes dos primeiros humanos - podem desaparecer.
— Organismos de montanha são especialmente vulneráveis às mudanças climáticas, porque não têm para onde correr quando aquele ambiente é diminuído. O resultado é a extinção completa — afirma o zoólogo, que faz pós-doutorado no Museu de História Natural do Instituto Smithsonian, em Washington.
A BBC Brasil acompanhou uma expedição científica ao Pico da Neblina em novembro passado, quando nove novas espécies foram descobertas por uma equipe composta por Prates e outros 11 biólogos da Universidade de São Paulo (USP). Cinco dessas espécies só existem em ambientes montanhosos.
Ele conta que um dos principais objetivos da expedição era entender como animais sem qualquer parentesco com espécies que habitam as áreas baixas de floresta foram parar na montanha. A resposta ajudará a explicar como a Amazônia se tornou o ambiente mais biodiverso do globo e como poderá ser afetada pelas alterações climáticas.
Enigmas científicos
Com 2.994 metros de altitude, o Pico da Neblina é um tepui, tipo de formação montanhosa mais antigo do planeta, originado no período Pré-cambriano, entre 4,6 bilhões e 542 milhões de anos atrás. É uma formação característica do Escudo das Guianas, que engloba o sul da Venezuela, a Guiana e o extremo norte do Brasil.
A erosão ocorrida ao longo de milhões de anos fez com que os tepuis se tornassem montes isolados e abruptos, com ecossistemas únicos.
Algumas das novas espécies encontradas no Pico da Neblina só têm parentesco com animais que vivem em outros tepuis, separados por milhares de quilômetros. Foi o caso de dois lagartos, apelidados pelos pesquisadores de Marrom Gigante e de Céu Noturno — este, por causa dos vários pontos brancos pelo corpo que lembram estrelas.
Segundo Prates, as descobertas reforçam a teoria de que, no passado, os tepuis eram conectados.
Outro lagarto achado pelos cientistas, do grupo Anolis, só tem parentesco com espécies que existem em áreas ainda mais distantes: nos Andes e numa região serrana de Mata Atlântica no Espírito Santo. O lagarto não habita as matas baixas em torno do pico, uma indicação de que não é capaz de suportar climas quentes.
Como explicar que um lagarto do tamanho de um dedo indicador, que não se desloca mais do que algumas dezenas ou centenas de metros ao longo da vida, conseguiu povoar regiões montanhosas tão distantes entre si?
Como uma espécie extremamente adaptada a climas frios de altitude conseguiu atravessar amplas áreas hoje ocupadas pela Caatinga e por florestas baixas e úmidas?
— É um grande mistério — diz Prates. — Esses lagartos são uma janela para um passado completamente e desconhecido da América do Sul.
Uma das possibilidades é que, no passado, a Amazônia era mais fria e formada por uma vegetação diferente, que serviu como um corredor entre as montanhas e se estendia inclusive pelo território hoje ocupado pela Caatinga.
— Mas essa é uma hipótese frágil, pois não temos evidência de que essa mata fria realmente existiu — afirma o zoólogo.
Outra teoria, considerada mais plausível por Prates, é que as montanhas sul-americanas já tenham sido conectadas por um gigante platô. Ao longo de milhões de anos, a formação foi sendo erodida até que só sobraram as áreas mais altas.
— Os animais ficaram isolados no topo dessas montanhas e então começaram a se diferenciar. Os montes que vemos hoje são só os sobreviventes, as relíquias de um platô muito mais alto no passado.
Prates e os outros biólogos que foram ao Pico da Neblina testarão essa hipótese por meio de exames de DNA dos animais coletados. As análises permitirão descobrir quando as espécies aparentadas se diferenciaram. Os dados serão então cruzados com informações geológicas.
Do passado à previsão do futuro
O zoólogo diz que os estudos também ajudarão a responder como a Amazônia se tornou tão rica em espécies e como o bioma poderá ser afetado pelas alterações climáticas.
— Se você aprende como os organismos responderam a mudanças ambientas no passado, começa a fazer inferências sobre como responderão a mudanças no futuro.
— Podemos ter uma ideia da velocidade de adaptação dos animais a ambientes novos e sua capacidade de ocupar outros espaços — afirma.
No caso do Pico da Neblina, há indícios de que o processo responsável pela configuração de seu ecossistema atual poderá se inverter.
— Assim como há evidências de que os ambientes alpinos (mais frios) desceram a montanha no passado, agora há a possibilidade oposta: de que o ambiente de baixada invada a montanha — explica Prates.
— Se houver um aumento da temperatura de modo que a mata da baixada invada os ambientes alpinos, o que está previsto para acontecer em várias regiões do globo, haverá uma substituição de boa parte da fauna desses ambientes.
— Os bichos no topo da montanha serão estrangulados — alerta.