Um grupo de cientistas das instituições de ensino superior norte-americanas University of Alaska Fairbanks e Colorado College publicou recentemente, na Frontiers in Astronomy and Space Sciences, um estudo que procura responder a uma dúvida centenária: qual a origem da coloração vermelha das "cataratas de sangue" na Antártida (blood falls, em inglês)? De acordo com a pesquisa, a resposta para o mistério pode ter relação com nanoesferas ferrosas que oxidam e deixam o líquido vermelho.
Para chegar a essa hipótese, a equipe submeteu amostras de água e solo retiradas das "cataratas de sangue" a um microscópio eletrônico de transmissão (TEM, na sigla em inglês). Essa tecnologia consegue ampliar os objetos de estudo em até 2 milhões de vezes. A partir disso, os pesquisadores conseguiram identificar minúsculas esferas de apenas alguns nanômetros (um nanômetro é equivalente a bilionésima parte do metro) de diâmetro flutuando na água.
Na etapa seguinte, os estudiosos submeteram as nanoesferas a uma análise química por meio de raios-X. Com isso, descobriram que essas estruturas eram constituídas por alumínio, cálcio, ferro, sílica, sódio e outros elementos químicos. A partir disso, chegou-se à hipótese de que o ferro presente nessas minúsculas esferas desempenha um papel fundamental para a mudança de cor da água no local.
Em declaração à imprensa, Kenneth Livi, pesquisador da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, e responsável por analisar os sólidos presentes na amostra, disse que a recente pesquisa apresentou um grande avanço ao considerar as nanoesferas, que não foram localizadas em estudos anteriores devido ao uso de métodos de detecção que não possibilitavam sua identificação.
Segundo Livi, a demora em se chegar a essa nova hipótese também se deve ao fato de os pesquisadores terem buscado a resposta no lugar errado, ao considerar que a coloração era advinda de algum mineral organizado em uma estrutura cristalina.
Para confirmar essa nova teoria sobre a origem da cor vermelha das "cataratas de sangue" será necessário realizar novos estudos.
— Um furo vertical até a interface gelo-rocha seria interessante para confirma a hipótese de um lago rico com atividade biológica — propõe Jefferson Cardia Simões, pesquisador e professor titular de Glaciologia e Geografia Polar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
As "cataratas de sangue"
A camada de água de derretimento na superfície da geleira da Antártida, que é conhecida popularmente como "cataratas de sangue", foi descoberta em 1911 pelo geocientista australiano Griffith Taylor durante uma expedição. Nessa época, o pesquisador foi um dos primeiros a perceber que a água derretida que flui por baixo da geleira ficava na coloração vermelho-sangue quando entrava em contato com o ar.
Em homenagem ao geocientista, a estrutura que reúne a camada de água de derretimento foi batizada de Geleira Taylor. Desde a descoberta das blood falls, diversos cientistas realizaram estudos na área. Como a cor avermelhada das rochas ou nascentes é causada geralmente por intemperismo de minerais ricos em ferro — como goethita, hematita e magnetita — , os pesquisadores acreditavam que isso também poderia explicar a coloração vermelho-sangue neste local. Para confirmar essa hipótese, pesquisas da década de 1960 buscaram vestígios desses minerais em amostras de água da geleira, mas como só foram encontrados em pequena quantidade, isso não permitiu avançar na investigação.
Nos anos seguintes, surgiu uma nova hipótese, a de que uma proliferação em massa de algas vermelhas na geleira derretida poderia ocasionar a coloração. No entanto, nenhuma alga foi encontrada no local.
Em 2017, um estudo da Cambridge University, na Inglaterra, que contou com o uso de um radar especial de penetração no solo, revelou que uma rede de fissuras no leito rochoso e túneis no gelo formavam um reservatório de água salgada enterrado que alimentava as cataratas no topo da geleira. A pesquisa também mostrou que a água da estrutura ainda flui apesar das baixas temperaturas devido à concentração de sal em combinação com a pressão da geleira.
— Grande parte das geleiras do mundo tem água na interface gelo-substrato. Como o gelo é um bom isolante térmico, o calor geotérmico, vindo da crosta terrestre é suficiente para gerar um filme d'água na base da geleira. No caso específico das blood falls, temos, abaixo da geleira, um ecossistema subglacial altamente salino, que abaixa o ponto de fusão do gelo — explicou Simões.
O estudo da universidade inglesa também confirmou que esses sais são regelados, mobilizados no gelo basal e trazidos à superfície da geleira que está sempre se movimentando
— O gelo derrete ou mesmo sublima, deixando os sais e outros materiais, incluindo sólidos, na superfície — acrescentou o pesquisador da UFRGS.
Além do fato de essas cataratas constituírem um sistema atípico por ter entre o gelo da geleira e a rocha do substrato água com material altamente salino, os pesquisadores também buscam estudá-las pelo fato de que podem abrigar extremófilos — organismos que sobrevivem em condições extremas, como baixíssimas temperaturas, sem realizar fotossíntese, usando carbono inorgânico para crescimento.
— Os extremófilos podem ser usados como modelo para buscar vida fora da Terra. Ambientes similares talvez sejam encontrados no gelo das regiões polares de Marte — exemplificou Jefferson.
Produção: Filipe Pimentel