Financiado por grandes companhias como Google, Amazon e Qualcomm, um instituto nos Estados Unidos tem entre seus alunos autoridades responsáveis por leis antitruste e por agências reguladoras em diferentes países, entre eles o Brasil. Segundo reportagem publicada no jornal The New York Times (NYT), o Global Antitrust Institute oferece cursos com tudo pago, em cenários paradisíacos, para transmitir aos participantes uma mensagem que beneficia as empresas por trás do evento: de que a melhor maneira de fomentar a competição é reduzir a interferência.
Há um ano, segundo o jornalista Daisuke Wakabayashi, autor da matéria, representantes de órgãos destinados a impedir a formação de trustes, cartéis e monopólios na Austrália, no Brasil, na China e em outros nove países se deliciaram com filés de US$ 110 e doses ilimitadas de vinho em um hotel de praia, com vista panorâmica para o Pacífico.
Era o fim da conferência de uma semana na bela Huntington Beach, no Estado americano na Califórnia, com 30 encarregados de impor as leis de defesa da competição em seus países. De acordo com o NYT, a lista contava, inclusive, com membros do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia ligada ao Ministério da Justiça, cuja missão é zelar pela livre concorrência no mercado brasileiro (leia mais abaixo).
Conforme o jornal, a viagem foi organizada e paga pelo instituto, criado em 2014 e vinculado à Universidade George Mason, em Fairfax, Virgínia, com base em um programa descrito como educação complementar para as autoridades. Seria uma forma de aprender mais sobre as bases econômicas das leis de defesa da competição.
Apesar disso, fontes ouvidas pelo NYT afirmam que o objetivo das palestras seria, indiretamente, facilitar a atuação das companhias. Por meio da universidade, o Global Antitrust Institute recebe doações das empresas de tecnologia que, coincidentemente ou não, enfrentam escrutínio de alguns dos mesmos reguladores inscritos nesses eventos.
Para chegar a essa conclusão, a reportagem partiu de centenas de páginas de e-mails e de documentos obtidos por meio de leis de acesso à informação, de entrevistas com quatro participantes de conferências passadas e da observação do evento em Huntington Beach.
Os documentos citados no texto incluem cheques com doações de centenas de milhares de dólares emitidos pelo Google e pela Amazon e um contrato de doação no valor de milhões de dólares assinado pela Qualcomm.
De acordo com o NYT, os e-mails mostram como os líderes do instituto, entre eles Joshua Wright, trabalharam em estreito contato com as empresas de tecnologia para responder a críticas por possíveis violações. Demonstram, também, de que forma o instituto cultivou e explorou relacionamentos com importantes interlocutores nos últimos anos.
— Não é um gasto significativo para as companhias, e o potencial benefício, mesmo que seja apenas o de reduzir moderadamente a probabilidade de derrota em um caso antitruste ambicioso, vale muito mais do que os valores investidos — disse o professor Michael Carrier, da Escola de Direito da Universidade Rutgers.
A relação com o Cade
Em 2016, segundo a reportagem publicada no jornal The New York Times (NYT), o Global Antitrust Institute convidou representantes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no Brasil para uma conferência. Em resposta, o superintendente-geral do órgão, Alexandre Cordeiro Macedo, que segue no cargo, disse que havia interesse em participar, mas que seria difícil enviar alguém por restrições orçamentárias.
O instituto então teria se oferecido para cobrir as despesas de até seis representantes do Cade em seminário realizado em Washington. Desde então, conforme o NYT, integrantes da autarquia participaram de conferências em Oahu, Santa Monica e Tóquio, com custos de viagem, hotel, transporte e a maioria das refeições pagos pelo instituto.
Só em 2019, 10 juízes brasileiros teriam viajado em classe executiva para participar de congresso no hotel Four Seasons, em Lisboa, Portugal. Além disso, Macedo foi estudioso visitante no instituto, onde passou dois meses em 2017. Isso criou um relacionamento estreito entre o Cade e o instituto.
Quando o Cade recebeu convite para a conferência em Huntington Beach, a agência mal conseguiu disfarçar seu entusiasmo: “Quero lhes dizer que, entre todas as oportunidades de treinamento oferecidas por nós durante o ano, a do GAI (Global Antitrust Institute) com certeza é a que mais atrai nosso pessoal”, escreveu um dirigente do Cade, por e-mail, em 2019.
Conforme o NYT, o Cade passou a permitir que o instituto selecionasse os convidados, a partir dos candidatos interessados. Quando o instituto estava tentando recrutar juízes brasileiros para a conferência em Lisboa, no ano passado, Douglas Ginsburg, juiz sênior do tribunal de recursos federal dos Estados Unidos, em Washington, e presidente do conselho consultivo do instituto, pediu ajuda a Cordeiro.
“Seria especialmente bom se você pudesse recrutar os juízes”, escreveu Ginsburg em fevereiro. Dias mais tarde, Cordeiro respondeu informando que havia recrutado sete juízes.
Em declaração por escrito à reportagem, Cordeiro afirmou que, além de servidor público, também era acadêmico, e que por isso “é natural que eu seja consultado sobre possíveis partes interessadas em tomar parte em debates dessa natureza”, e que nada havia de errado em recomendar “outras autoridades públicas para uma renomada conferência acadêmica internacional”. Ele disse que o instituto havia pagado por passagens no passado, mas que ele não recebeu qualquer forma de assistência financeira.
Já Ginsburg não respondeu e-mails nem um telefonema nos quais lhe foram pedidos comentários.
O Cade afirmou, separadamente, que não estava ciente dos patrocinadores empresariais do instituto e que seus integrantes não participam de treinamento patrocinado “diretamente” por empresas privadas: “O Cade tem regras rigorosas quanto à atuação de seus empregados e para garantir que a participação em eventos de qualquer natureza não influencie o trabalho realizado dentro do escopo de nossa autoridade.”
O que dizem Google, Amazon e Qualcomm
Em nota à reportagem, o diretor do instituto, Joshua Wright, declarou que a missão, o currículo e as palestras da organização estão disponíveis na internet para que o público avalie e que “observadores de mente aberta” percebem a qualidade da instrução oferecida para a condução de casos de combate a monopólios. Segundo o comunicado, “a combinação entre experiência prática e conhecimento acadêmico é um motivo para que dirigentes de agências de fiscalização do mundo todo sempre escolham enviar representantes aos nossos programas”.
Já o Google, cujas doações são destinadas ao Centro de Lei e Economia da Universidade George Mason e à George Mason University Foundation (à qual é vinculado o instituto), destaca a importância de apoiar as organizações acadêmicas.
— Temos um compromisso de transparência quanto às organizações acadêmicas às quais fazemos doações. Essas organizações não agem em nosso benefício e antecipamos e requeremos que nossos beneficiários revelem a origem de suas verbas — disse Julie Tarallo McAlister, porta-voz do Google.
A Amazon também menciona a George Mason University Foundation entre as “organizações setoriais, coalizões, ONGs e organizações de bem-estar social” que receberam doações em valor de mais de US$ 10 mil da companhia.
O nome do instituto não aparece na lista, mas, ao agradecer à empresa em 2019, Wright disse a Pat Bajari, vice-presidente e economista-chefe da Amazon, que a doação apoiaria a missão de fornecer “a base econômica necessária a uma análise antitruste rigorosa”.
Em comunicado à reportagem, Jack Evans, porta-voz da Amazon, afirmou que, “como a maior parte das grandes empresas, apoiamos uma ampla gama de organizações que realizam pesquisas em áreas conectadas aos nossos negócios. Isso não significa que sempre concordemos com seus pontos de vista ou que dirijamos o trabalho que elas realizam”.
O NYT também entrou em contato com a Qualcomm, que preferiu não se manifestar.