Entre o fim do ano passado e o início deste, muitas dezenas de pessoas que estavam lutando contra pensamentos suicidas e surtos de emoção intensa abriram sua vida para uma empresa chamada Mindstrong, no que se tornou um experimento observado de perto no Vale do Silício.
A Mindstrong, um empreendimento cofundado por um ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, prometeu uma coisa que nenhuma medicação ou terapia pode oferecer: um sistema de alarme preliminar que identificaria quando o usuário estivesse na iminência de uma crise emocional – um "alarme de incêndio" pessoal e digital.
No ano passado, autoridades municipais e estaduais de saúde mental da Califórnia se encontraram regularmente com representantes de pacientes e com a Mindstrong e outra empresa, a 7 Cups, para testar aplicativos de smartphone voltados a quem estivesse sendo tratado no sistema de saúde mental público do estado. Autoridades de 13 condados e de duas cidades estavam envolvidas e os aplicativos já estão disponíveis para o público.
Os novos usuários, a maioria diagnosticada com transtorno de personalidade limítrofe, são tratados pela rede de saúde mental do Condado de Los Angeles e estão entre os primeiros a serem testados nesse tipo de colaboração. Eles permitiram que a Mindstrong instalasse digitalmente um teclado alternativo em seus smartphones, incorporado ao aplicativo, para monitorar sua atividade de tela a cada momento.
"Pessoas com borderline têm muita dificuldade de identificar quando a angústia está muito alta. Se pudermos mostrar a elas, usando esse modelo eletrônico de monitoramento, que perderam o controle ontem, por exemplo, após terem brigado com um colega de trabalho, então elas terão a possibilidade de antecipar aquela emoção e de lidar com ela usando as habilidades aprendidas", explicou Lynn McFarr, diretora da clínica de terapia cognitivo-comportamental e comportamental dialética do Centro Médico Harbour da UCLA, que fornece cuidado para pacientes do sistema de saúde do Condado de Los Angeles.
A tecnologia digital tem um potencial enorme para transformar o tratamento da saúde mental e cerca de 10.000 aplicativos inundam agora o mercado, cada um prometendo aliviar um sintoma psicológico ou outro. Os smartphones permitem monitoramento praticamente contínuo de pessoas que apresentam diagnósticos como depressão, ansiedade e esquizofrenia, transtornos para os quais há apenas poucos novos tratamentos disponíveis. Contudo, não há ainda pesquisa suficiente para demonstrar se esses suportes digitais são eficazes.
A parceria da Califórnia com o Vale do Silício é uma tentativa de mudar esse cenário: recrutar alguns dos residentes mais privilegiados do estado para ajudar alguns dos menos favorecidos.
A Califórnia tem guardado o dinheiro do contribuinte para colocar o plano em prática nos próximos cinco anos. São mais de US$ 100 milhões, que correspondem a uma parte do Proposition 30, um aumento de impostos aplicado sobre fortunas aprovado em 2012. Se o Big Data puder ajudar a administrar o estresse mental persistente, o caminho para o futuro passará possivelmente pela Califórnia.
Mas, se pudermos nos basear nos primeiros indicadores, o caminho será lento e tortuoso, marcado por questionamentos sobre eficácia, privacidade e apelo ao usuário. Pelo menos por enquanto, o esforço feito pela Califórnia para impulsionar o futuro digital da medicina está se deparando com algumas das mesmas questões que atingiram os testes de remédios: problemas de recrutamento, perguntas sobre consentimento informado e a realidade de que, independentemente do tratamento, algumas pessoas não se adaptarão a ele e vão abandoná-lo.
"Precisamos entender tanto o lado bacana quanto o assustador da tecnologia", disse Keris Myrick, presidente dos serviços de apoio para o Condado de Los Angeles, que esteve muito envolvida na colaboração.
Idealmente, ela disse, os aplicativos poderiam dar às pessoas ferramentas personalizadas para lidar com seu sofrimento e desafogar um pouco o sistema de saúde mental. Mas usar esses aplicativos significa compartilhar dados pessoais com empresas privadas, e qualquer "alarme de incêndio" tem o potencial de disparar a ansiedade, bem como de enfraquecê-la.
"Queremos garantir que as pessoas tenham as informações necessárias para usar os apps de forma segura, que tenham alguma familiaridade com o ambiente digital e que sua privacidade esteja protegida", esclareceu Myrick.
O esforço começou de forma mais séria no meio do ano passado, quando as autoridades estaduais, após um processo de licitação, escolheram duas empresas para participar. A pimeira, Mindstrong, foi fundada pelo dr. Paul Dagum, cientista da computação e cirurgião; o dr. Rick Klausner; e o dr. Thomas R. Insel, psiquiatra e neurocientista que dirigiu a equipe de saúde mental da Verily, uma divisão da Alphabet Inc., empresa controladora da Google, de 2015 a 2017, após ter deixado o NIMH, do qual foi diretor por mais de uma década.
"Para ser sincero, foi um pouco difícil no começo e pode levar alguns anos. Talvez o programa primeiro precise fracassar", disse Insel, recentemente nomeado pelo governador Gavin Newsom como conselheiro especial do sistema de saúde mental – um papel não remunerado e informal, sem autoridade fiscal nem autoridade regulatória. Insel mantém seu papel como presidente da Mindstrong.
A outra empresa parceira da Califórnia, a 7 Cups, foi fundada por Glen Moriarty, psicólogo. A equipe original de terapeutas incluía a filha de Insel (que recentemente deixou a equipe).
A 7 Cups funciona como uma rede de saúde digital: os clientes angustiados podem conversar, por meio de mensagens de texto, com um "ouvinte" treinado que julga a urgência do problema e então, se necessário, conecta a pessoa com um terapeuta da 7 Cups. A empresa registrou aproximadamente 340.000 ouvintes em 189 países, oferecendo suporte em 140 idiomas. O serviço alcançou o número de 40 milhões de pessoas, segundo a empresa, dos quais 0,5 por cento precisou de encaminhamento.
As empresas ganharam a oportunidade de refinar seus produtos e possivelmente ganhar o endosso da Califórnia, assim como incorporar uma quantidade relevante de informações acerca dos novos pacientes. Terapeutas e usuários do aplicativo ganharam a possibilidade de colaborar com os engenheiros do Vale do Silício no desenvolvimento de um produto valioso para lidar com a angústia mental persistente.
"Estamos fazendo algo que nunca tinha sido feito antes, com consumidores trabalhando diretamente com os desenvolvedores de aplicativos", disse Kelechi Ubozoh, gerente de engajamento comunitário da Autoridade de Serviços de Saúde Mental da Califórnia, agência estadual responsável por escolher os dois aplicativos e coordenar a ação nos diferentes condados. "Parte do desafio é que existem culturas diferentes que não falam a mesma língua em todos os momentos. É um longo processo de aprendizado."
A lógica por trás do aplicativo Mindstrong, em particular, dá uma ideia de como os engenheiros estão pensando em usar as informações oriundas de um smartphone para gerenciar crises mentais.
Para a maioria das pessoas, o uso do telefone tende a se manter estável dia após dia. Após coletar uma semana de dados, os algoritmos do Mindstrong podem estabelecer o limiar normal de atividade de uma pessoa, ou sua base de referência, por meio de um número de medidas, incluindo com que frequência o telefone é usado e qual a velocidade com que a pessoa digita, disse Insel.
Mindstrong e outras empresas de tecnologia que rastreiam o uso do telefone chamam esse conjunto de dados diários médios de "fenótipo digital", uma denominação emprestada da genética.
Se várias medidas começarem a se afastar muito da média do usuário, o aplicativo da Mindstrong aciona uma mensagem ao usuário. A empresa leva 24 horas para registrar uma rotina desestabilizada. O aplicativo também resume o uso por meio de gráficos, para que os usuários possam acompanhar suas tendências por dias ou semanas.
"Realmente o vemos como um alarme de incêndio. Queremos que esse alarme dispare quando houver um incêndio e não apenas quando houver fumaça. Estamos trabalhando nisso no momento", afirmou Insel.
O aplicativo também traz uma função de diário: um cartão digital que os usuários preenchem todos os dias, apontando os eventos, o estresse relacionado ao trabalho, o humor e a qualidade do sono, entre outras coisas.
"Gosto do cartão diário. Na terapia, você é capaz de olhar todos os cartões da semana em questão, ver os bons e maus momentos e descobrir por que seu humor estava desequilibrado", explicou Skyy Brewer, de 30 anos, um barbeiro licenciado em Los Angeles que passou a usar o diário desde dezembro para registrar os sintomas de depressão e ansiedade.
Entre a Mindstrong e a 7 Cups, os californianos do sistema público de saúde poderiam, em teoria, obter tanto um sistema de aviso preliminar quanto o acesso rápido aos serviços mais apropriados.
Mas o programa da 7 Cups, que teve início no ano passado, foi adiado pelo estado devido a uma revisão das finanças do governo e preocupações sobre algumas das redes de ouvintes da empresa. De acordo com autoridades da Califórnia, alguns ouvintes estavam tendo conversas inapropriadas com clientes por meio de mensagens de texto, envolvendo-se com eles e se tornando muito pessoais, violando as regras da empresa; o assunto está sendo tratado, disseram autoridades estaduais.
"Usamos uma série de técnicas e programas para identificar, quantificar, reabilitar, bloquear ou banir linguagem e/ou indivíduos nocivos. Tratamos questões como confidencialidade, privacidade, segurança e todas as formas de assédio de maneira muito séria", garantiu o fundador e CEO da empresa, Glen Moriarty, por e-mail.
Quanto ao aplicativo Mindstrong, apenas o Condado de Los Angeles distribuiu a tecnologia às poucas dezenas de pessoas que tinham instalado os teclados entre o fim do ano passado e o início deste. Cerca de metade delas já não usa mais a função teclado. Algumas perderam o interesse; outras tiveram dificuldade em se adaptar ao novo formato (que funciona melhor em telefones com tecnologia Android do que em iPhones). Muitos usuários decidiram que gostavam do recurso do diário, sem o resto.
"Os condados estão gastando dinheiro com esse programa, dizendo: 'Olhem, isso aqui é ótimo, estamos oferecendo a você um Fitbit [marca de rastreador de atividade física].' E descobrimos que a maior parte dos cidadãos não entendeu como isso funciona. Além disso, eles não explicaram sobre as possíveis desvantagens de permitir o acesso a um número tão grande de dados pessoais", argumentou Dawniell A. Zavala, conselheiro geral e diretor associado da Saúde Mental Americana da Carolina do Norte, um grupo de pacientes autorrepresentativo.
Qualquer desenvolvedor de aplicativos provavelmente vá exigir um vasto número de dados de milhares de usuários para começar a adaptar o produto às muitas permutações e combinações das doenças mentais e às maneiras idiossincráticas como estas se expressam no comportamento diário de um indivíduo. E ter acesso aos registros médicos dos pacientes tem sido alvo de resistência na Califórnia.
"Dissemos não – não ao acesso aos registros médicos eletrônicos do Condado de Los Angeles", asseverou Myrick. Não está claro se outros condados estão entregando esses registros e, se sim, se os pacientes consentiram.
Nesta era de hacking e violações de dados, as empresas de tecnologia que adquirem tanto informações médicas quanto de monitoramento apresentam riscos reais à confidencialidade do paciente.
As empresas podem até oferecer garantias de não compartilhar os dados, mas, se essa empresa for vendida para outra empresa, os dados vão junto. Muitos aplicativos trazem essa cláusula escondida em 13 páginas de letras miúdas.
JOHN TOROUS
diretor da divisão de psiquiatria digital, Centro Médico Beth Israel Deaconess (Boston)
"Se estamos animados com o potencial desses dados, deveríamos estar igualmente preocupados com os riscos; e estes parecem estar se desenvolvendo mais rapidamente do que os benefícios científicos", disse o dr. John Torous, diretor da divisão de psiquiatria digital do Centro Médico Beth Israel Deaconess, em Boston. E acrescentou: "As empresas podem até oferecer garantias de não compartilhar os dados, mas, se essa empresa for vendida para outra empresa, os dados vão junto. Muitos aplicativos trazem essa cláusula escondida em 13 páginas de letras miúdas."
Os desenvolvedores de aplicativos podem ainda transformar os cuidados de saúde mental. Mas, até agora, a história sugere que eles não conseguirão elaborar um programa que os livre do trabalho árduo e cada vez maior de testar novos tratamentos.
"A questão com a Califórnia é que lá tem um número muito grande de pessoas no sistema público. Pelo menos, lá estão dispostos a colocar a pergunta: 'Por que isso não está funcionando? Por que há condados que não estão trabalhando em parceria com esse setor maravilhoso da tecnologia?' E, a partir disso, fazer algo a respeito", concluiu Insel.
Por Benedict Carey