Maior bairro do Rio Grande do Sul, segundo dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Restinga, na zona sul de Porto Alegre, possui uma característica peculiar: é loteada por ao menos 10 grupos criminosos vinculados ao tráfico de drogas.
Foi o conflito entre dois deles que culminou no assassinato de Camilla Lopes Fruck, 25 anos, vítima de uma bala perdida na madrugada do último sábado (16). A jovem estava dentro de um veículo, na Esplanada da Restinga, quando se iniciou um tiroteio. Um dos disparos transfixou a janela, alvejando a vítima na cabeça — ela chegou a ser socorrida por amigos, mas não resistiu.
Historicamente, a Restinga possui a presença de, pelo menos, uma dezena de quadrilhas — algumas delas maiores e já consolidadas, outras de menor influência no tráfico. São criminosos que se aliam a facções, inclusive dentro do sistema prisional, ficando sob o guarda-chuva desses grupos quando membros são presos, por exemplo. Essa dinâmica, entre aliados e rivais, no entanto, pode se alterar, levando a novos conflitos. O número de quadrilhas, segundo as polícias, também flutua, impedindo uma estatística precisa.
— Frequentemente, esses grupos se fundem ou se separam. Surgem grupos novos. Existem os que são pequenos, que, normalmente, dominam de um a dois quarteirões de área. Esses são vinculados a alguma facção criminosa maior — detalha o delegado André Luiz Freitas, da 4ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
Até o episódio que resultou na morte de Camilla, o cenário no bairro era considerado tranquilo pelas forças de segurança. O crime, ainda que seja resultado de disputas entre traficantes, é elencado como um fato isolado, fora da curva. Em anos anteriores, como em 2016 e 2017, quando o Rio Grande do Sul vivia um período de violência exacerbada nas ruas, com atentados a tiros, sequestros de rivais e esquartejamentos, isso também se refletia no bairro da Zona Sul.
No início de 2019, mais uma vez, a Restinga viveu momentos de tensão acentuada, com tiroteios frequentes entre grupos criminosos. Em janeiro daquele ano, por exemplo, um rapaz de 19 anos caminhava na direção de uma lanchonete, quando cruzou a Rua Tobago. Aquele era o limite de área entre dois grupos ligados ao tráfico. Avançou duas quadras no território inimigo, e, após trocar empurrões com um gerente do grupo rival, foi morto a tiros no meio da rua. Era o cenário dos conflitos latentes, que levaram, naquele período, à série de ataques entre três facções.
Dois grupos envolvidos
No caso da morte de Camilla, a polícia já identificou os dois grupos que estariam por trás do tiroteio. Um deles possui berço no Vale do Sinos e atuação em todo o território gaúcho. O outro, formado mais recentemente, tem presença nas zonas norte e sul da Capital. A polícia tenta ainda identificar de onde exatamente partiu o disparo que matou a jovem.
Ali existem vários grupos, alguns são aliados, outros inimigos. Naquela data, dois grupos que se consideram atualmente inimigos se encontraram ali. Já havia um desentendimento anterior, provavelmente em decorrência de áreas de tráfico. E a partir daí ocorreu o tiroteio, que acabou vitimando a Camilla.
ANDRÉ LUIZ FREITAS
Titular da 4ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa
Desde a morte da jovem, o policiamento na região foi reforçado, mantendo a chamada “saturação de área”. Um dos intuitos é justamente evitar eventual revide entre os grupos. As equipes do 21º Batalhão de Polícia Militar (BPM) receberam apoio do Batalhão de Choque de Porto Alegre e das Forças Táticas de outros batalhões.
— Estamos com ação de reforço desde a madrugada de sábado, quando aconteceu o ato. Durante as 24 horas do dia, tem operação. Isso tem dois objetivos: um é tranquilizar a população de que foi um fato isolado e existe segurança no local, e outro é para que a gente consiga com essa saturação efetuar a prisão do autor do homicídio — diz o comandante do 21º BPM, tenente-coronel Hermes Völker.
Secretário da Segurança Pública do Estado, Sandro Caron afirmou em entrevista à Rádio Gaúcha que todos os envolvidos no conflito que levou à morte da jovem serão responsabilizados.
Se a gente identificar alguém que esteja no sistema prisional e que determinou a prática desses homicídios, estimulou esse conflito, de modo que a gente tenha esse resultado, a morte de uma inocente, as pessoas que estão presas vão ter consequências gravíssimas.
SANDRO CARON
Secretário da Segurança Pública do RS, sobre possibilidade de isolamento de lideranças no sistema prisional
O perfil dos homicídios
Em 2023, segundo dados da SSP, foram registrados 23 homicídios no bairro Restinga. Desses casos, 17 deles ocorreram no meio da rua. Os homens representam a maioria das vítimas — somente três eram do sexo feminino. A maior parte dos homicídios ocorreu no período noturno, entre 20h e 2h — somente dois foram durante a manhã. Os mortos tinham média de idade de 29 anos, sendo o mais jovem com 21 anos.
Prioridade no RS Seguro
Ainda em 2019, a Restinga foi um dos bairros priorizados pelo programa RS Seguro, do governo do Estado, para receber ações de prevenção à violência. O intuito é atuar em diversas frentes, como educação, saúde, cultura, esporte, entre outros, na tentativa de evitar que o crime tome o espaço do Estado. Desde então, segundo o governo, foram implementados programas e ações no bairro, assim como em outras comunidades.
Entre as medidas, estão, por exemplo, o programa Primeira Infância Melhor, a Taça das Favelas, o projeto Xadrez na Escola, editais voltados à cultura, e a implementação de um centro de juventude, que deve ser inaugurado no próximo ano. O bairro também está entre os elencados para receber ações do RS Seguro Comunidade.
— O RS seguro tem os quatro eixos bem estruturados, para ter essa transversalidade. Ações de resposta já estão sendo tomadas em relação aos grupos criminosos. Mas sabemos que os indicadores, a médio e longo prazo, dependem de ações de prevenção. Ações que podem parecer simples, mas que fazem a diferença — analisa o secretário-executivo do RS Seguro, Antônio Padilha.
Histórico
A Restinga nasceu há mais de 50 anos como loteamento para abrigar moradores desalojados de vilas pobres da área central de Porto Alegre. Cresceu, tornando-se o bairro mais populoso da Capital. Em 2013, seis unidades de saúde atendiam 110 mil moradores com endereços cadastrados no bairro. É o maior bairro do Rio Grande do Sul, com 62.448 habitantes, segundo dados do Censo 2022.