Dirlei Torquato, 71 anos, guarda em casa as fotografias tiradas pela neta e roupas que ela adorava usar. Por algum tempo, preservou o quarto dela totalmente intacto, na esperança de que ela cumprisse a promessa de regressar para casa. Letícia Torquato Pereira, 15 anos, saiu do apartamento onde vivia com os avós maternos em setembro de 2020 para ir até a Usina do Gasômetro, na orla do Guaíba. A adolescente nunca mais voltou para casa.
A Polícia Civil concluiu que a garota foi assassinada num caso envolvendo ciúmes e queima de arquivo. O corpo dela nunca foi encontrado. Os réus Ana Cristina Araújo da Rosa, 57, e Jonatha Comeli Fontans, 22, respondem pelo crime.
O processo ainda está em fase de instrução, na qual são ouvidas testemunhas, interrogados os réus, apresentadas alegações e, por fim, a Justiça define se os dois devem ir ou não a júri pelo crime. A expectativa era de que as primeiras testemunhas fossem ouvidas em audiência que seria realizada nesta sexta-feira (16). No entanto, a sessão foi novamente cancelada.
— O processo é moroso, cansativo, angustiante. A audiência já havia sido cancelada duas vezes — reclama a avó.
Segundo o Judiciário, houve adiamento das audiências em razão do estado de saúde da ré Ana Cristina. Em abril de 2023, deveriam ter sido ouvidas testemunhas de acusação. No entanto, a sessão foi encerrada sem que as pessoas fossem ouvidas, já que a ré não compareceu, sob a alegação de que estava hospitalizada. Uma nova audiência foi agendada, mas também não ocorreu.
A dessa sexta-feira foi cancelada na última quarta-feira (14). A decisão se deu considerando o atestado médico apresentado pela defesa de Ana Cristina, de que ela está impossibilitada de participar da audiência, ainda que de forma virtual. A Justiça deu prazo de 10 dias para a defesa da ré apresente documentação médica que indique a previsão de recuperação dela, para que possa participar da sessão. Somente depois disso, deve ser agendada nova data para a audiência.
Testemunhas aguardam para ser ouvidas
Foram indicadas 16 testemunhas pela acusação, quatro pela defesa de Ana Cristina e cinco pela de Fontans. Ao final desses depoimentos, os réus ainda precisarão ser interrogados. A avó e a mãe da adolescente estão entre as testemunhas previstas para serem ouvidas — o pai de Letícia morreu vítima de latrocínio (roubo com morte) antes do nascimento dela.
— Queremos justiça e, o mais importante, para colocar um ponto no nosso luto, seria termos o corpo dela. Não vai diminuir o nosso sofrimento pelo fato, mas, de qualquer forma, teremos um certo alívio. Seria uma forma de acabar com essa angústia, com essa ansiedade que nos atormenta desde setembro de 2020 — desabafa a avó.
Alguns dias após desaparecer, a adolescente chegou a fazer contato com Dirlei e prometeu que retornaria para casa. Ao longo de meses, a família aguardou por notícias sobre o possível paradeiro de Letícia. Nesse período, o avô materno faleceu, sem ter respostas sobre o que acontecera com a neta.
— Ele era muito próximo dela, e tinha problema cardíaco. Aquilo tudo foi um sofrimento muito grande. A gente pensa que esse processo todo da Letícia tenha acelerado a doença dele. Foram e ainda são tempos difíceis. Isso tudo ocorreu durante a pandemia. De repente, a gente perdeu dois entes queridos, um perto do outro. É muito sofrido ter que lidar com isso — lamenta Dirlei.
Por algum tempo, a família manteve a expectativa de que Letícia retornasse para casa. Mas ao longo dos meses essa esperança se desfez. Um ano e oito meses após o sumiço, a investigação concluiu que Ana Cristina e Jonatha teriam matado a adolescente e ocultado o corpo dela. Os dois negam que tenham assassinado a garota.
— A gente está nesse luto desde o desaparecimento dela e constatação da morte. Isso tudo é muito sofrido. Ainda guardo as fotografias dela, as roupas. Muita coisa a gente conserva. Embora não esteja mais entre nós, a memória vai ficar para sempre — diz a avó.
Ciúme e queima de arquivo
Mesmo sem a localização do corpo de Letícia, a Polícia Civil concluiu que a adolescente foi assassinada e que o crime foi motivado por ciúme. Segundo a investigação, Fontans já conhecia a adolescente desde criança, por morarem próximos. Em 2020, ele precisou deixar o local onde residia, no Centro Histórico, e por intermédio de uma amiga teria conhecido Ana Cristina e ido morar na casa dela, em Cachoeirinha.
Nos dias posteriores ao desaparecimento, a garota teria permanecido na companhia dos dois. Testemunhas relataram ter visto Letícia embarcar no veículo de Ana Cristina. A mulher teria ciúmes da adolescente, segundo a investigação, por um suposto envolvimento com um ex-namorado dela. Não foi possível descobrir ao longo da investigação em que momento aconteceu a morte, mas a polícia acredita que ela tenha sido assassinada na Região Metropolitana.
Quando foram ouvidos durante a investigação, os dois negaram envolvimento no sumiço. Conforme a Polícia Civil, Ana e Fontans estavam também envolvidos com atividades criminosas, vinculadas ao tráfico de drogas. A morte da adolescente teria, além da motivação de ciúme, contexto de queima de arquivo, por ela passar a ter conhecimento sobre a forma como agiam.
Contrapontos
O que diz a defesa de Jonatha Comeli Fontans
Os advogados criminalistas Guilherme Moraes e Katherine Henz, que representam Fontans no processo, afirmam que o réu sempre esteve à disposição da Justiça e que, em que pese se tratar de um caso extenso, com diversas testemunhas e muitos detalhes, esperam pela realização de nova audiência.
Confira a nota enviada pela defesa:
"Desde a investigação, nosso cliente sempre esteve — e continuará — a disposição do Poder Judiciário, prestando todos esclarecimentos que estão ao seu alcance e se colocando disponível para esclarecer os fatos versados nos autos".
O que diz a defesa de Ana Cristina Araújo da Rosa
O advogado Antenor Colombo Neto, responsável pela defesa da ré, enviou nota, na qual afirma que a cliente nega ter cometido o crime, mas sofre com problemas de saúde.
Confira a manifestação:
Inicialmente cabe ressaltar que a denunciada Ana sempre negou a participação no fato que lhe é imputado e sempre se colocou à disposição da justiça, mas infelizmente é uma pessoa com saúde debilitada portadora de câncer, teve de fazer há pouco tempo um transplante e, atualmente, passa mais tempo internada no hospital do que em sua própria casa sendo esse o provável motivo que tenha levado a um lapso temporal maior para o encerramento do processo.
A defesa entende a importância do esclarecimento desses fatos, tendo em vista que há a família da vítima que ainda aguarda o desfecho desse processo e este advogado está comprometido e fazendo o que está ao seu alcance para que o caso tenha um desfecho o mais breve possível, no entanto, a vida da denunciada não pode ser negligenciada e sua saúde colocada em risco forçando o seu comparecimento contra ordens médicas.
O caso
Indiciamento
Em abril de 2022, os dois suspeitos foram indiciados pelo assassinato de Letícia. A apuração do caso apontou que a adolescente teria passado os últimos dias de vida acompanhada de Ana Cristina Araújo da Rosa e Jonatha Comeli Fontans, e por eles teria sido morta. Os dois foram indiciados por homicídio qualificado e ocultação de cadáver.
Prisão domiciliar
Ana Cristina foi presa em março de 2022, quando deixava a residência de uma testemunha. Desde junho de 2022, está em prisão domiciliar, podendo sair de casa somente para atendimento médico. Já Fontans chegou a ser detido durante a investigação, mas recebeu o direito de responder ao caso em liberdade. Nenhum dos dois pode manter contato com testemunhas.
Denúncia
O Ministério Público denunciou ambos em 2 de maio de 2022, por homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima. A denúncia foi recebida pelo juiz no dia seguinte, quando os dois acusados se tornaram réus.
Avaliação psiquiátrica
Em 3 de maio do ano passado, a ré Ana Cristina passou por perícia psiquiátrica, para avaliar sua sanidade mental. Conforme o Judiciário, o perito concluiu por sua imputabilidade, ou seja, que a ré tinha, tanto à época do fato quanto na data do exame, capacidade de entendimento dos próprios atos.