Facções criminosas são a matéria-prima das pesquisas da cientista social gaúcha Marcelli Cipriani, 33 anos. Ela começou a estudar o assunto em 2015, numa pesquisa de campo no Presídio Central.
Mergulhou no papel das facções como forma coletiva de viver o crime, nas suas relações sociais e normas, identidades e culturas. Entrevistou envolvidos, descreveu o impacto dos conflitos no cotidiano dos jovens.
Não parou mais. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fez mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e um livro, embasado na sua dissertação, intitulado Os coletivos criminais de Porto Alegre entre a paz na prisão e a guerra na rua.
Agora, trabalha no doutorado em Sociologia pela UFRGS e, em paralelo, numa pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, ligado ao Ministério da Fazenda), sobre impactos das prisões no cotidiano dos familiares de presos.
Nessa entrevista, Marcelli fala sobre quadrilhas, facções, cartéis e o submundo em geral.
É correta a impressão de que as facções se atacam muito nas ruas (no varejo), mas usam os mesmos contatos e até formam consórcios para adquirir entorpecentes no Exterior?
Sim, mas essa é uma possibilidade e não uma regra. Hoje, grande parte do varejo local está estruturada pelas facções — e, embora elas tenham particularidades, são protagonistas em um mesmo processo. No atacado, por sua vez, as facções do Rio Grande do Sul coexistem com facções de outras regiões, empresários independentes e inúmeros grupos com vários formatos, tamanhos e funções, não ocupando o mesmo papel na estruturação do mercado.
Por exemplo, um transportador de drogas que atua na fronteira do Paraguai pode vir a fazer "frete" para duas facções que, aqui, são rivais. A rivalidade é irrelevante ao prestador de serviço, pois ele não está sujeito às configurações mercantis e normativas vigentes no Estado.
Há circunstâncias em que o fornecedor internacional trabalha apenas com repasse de quantias muito elevadas e/ou condições de pagamento restritivas, o que abre espaço a alternativas como o consórcio (entre facções). Esse acordo se dá na escala dos atacadistas, com a cooperação servindo a um interesse geral: manter o fluxo de drogas na cadeia mercantil de ambos os grupos. Isso não significa, entretanto, que os subgrupos responsáveis pela distribuição interna em cada facção poderão comprar e vender drogas uns dos outros.
As lideranças de facções rivais no sistema prisional se respeitam e fazem acertos geopolíticos para regular o mercado? Se sim, esses acertos são cumpridos pelas bases da facção, pelos gerentes de bocas-de-fumo nas vilas? Ou eles acabam se envolvendo em disputas regionais e locais, à revelia do acerto na cúpula?
À exceção de rivalidades interpessoais, as lideranças de facções se respeitam e se comunicam em certas circunstâncias, como para acordar regras de convívio, debater o controle de áreas sob disputa e dividir galerias prisionais. Em alguns contextos, "prefeitos" de galerias rivais também colaboram entre si, desde juntando dinheiro para melhorar o ambiente às crianças e mulheres que visitam familiares presos, até pressionando a administração pelo cumprimento da lei de execução penal.
Sobre a relação entre a "base" e a "cúpula", parece existir uma impressão de que a violência é o primeiro recurso usado pelas facções para resolver dissensos. Isso não é verdade. Em situações que podem trazer consequências extensivas às relações entre grupos, a violência é regulada e só tende a emergir quando outras tratativas negociais são ineficazes. Assim, se as facções não estão sob estado de guerra declarado — e afora eventuais traições —, ataques com grande impacto costumam ser o ponto final (e não inicial) em uma cadeia de eventos mais ampla.
Isso não significa dizer que inexiste autonomia para o uso da violência letal no varejo, mas que há uma distinção entre poder empregá-la de modo pontual (e econômico) ou para iniciar um conflito territorial duradouro. Essas decisões, que têm caráter mais logístico, são debatidas por subgrupos de tamanho diferente em cada facção, em geral compostos por seus fornecedores e grandes distribuidores.
As mortes no varejo das drogas nem sempre são iniciativa da cúpula das facções. O varejo opera com relativa autonomia, mas as lideranças regulam questões que funcionam ou como um princípio geral do grupo, ou como orientação sobre como as disputas devem ser tocadas em determinada região.
MARCELLI CIPRIANI
A redução no número de homicídios, no Estado e no Brasil, passou por algum pacto de não-agressão entre as facções?
Se olharmos apenas para as variações nos patamares das taxas de homicídios no Brasil, percebemos que elas resultam principalmente dos conflitos e acordos conjunturais entre facções — e, por consequência, que a maioria de suas vítimas atua na ponta dos mercados ilegais. Em locais ou períodos marcados pela hegemonia de uma facção e/ou onde a estruturação desses mercados alcançou níveis estáveis, os índices costumam ser mais baixos e se manter reduzidos. Já onde as facções estão em disputa ou a faccionalização é recente, os homicídios tendem a apresentar subidas rápidas.
Durante 2016 e 2017, por exemplo, houve uma guerra generalizada por poder e legitimidade em Porto Alegre, que levou ao aumento substancial do número de mortes. No ano seguinte, a acomodação territorial e mercantil das facções foi alcançada por uma série de fatores (inclusive acertos entre rivais), registrando-se uma queda expressiva.
MARCELLI CIPRIANI
Porém, as principais facções intensificaram sua expansão em outros municípios, onde os grupos criminais tinham caráter local e o mercado era pouco faccionalizado. Com a intenção de incorpora-los nas redes faccionais, elas exportaram práticas, saberes, drogas para compra em fluxo contínuo e empréstimos de armamento, reestruturando as relações entre esses grupos e redimensionando seus conflitos. Por isso é que, na mesma época, os homicídios caíram em Porto Alegre e aumentaram em várias cidades pequenas e médias do Estado.
O Brasil tem cartéis? Podemos considerar o PCC e o Comando Vermelho como um cartel, dada a sua internacionalização?
A imagem que se popularizou mundialmente sobre os cartéis foi a do monopólio exercido por grupos que, associados verticalmente, controlavam o comércio das drogas, fixavam preços e dividiam os mercados entre si. Isso só era possível porque a Colômbia, diferentemente do Brasil, é um país produtor de cocaína. Essa definição é bastante controversa, mas como o termo é amplamente empregado no contexto colombiano e mexicano, seu uso segue sendo mais apropriado do que no Brasil, onde as facções se estruturam por elementos e sob condições diferentes, tampouco se entendendo como carteis. Nesse sentido, não vejo porque chama-las dessa forma, substituindo a multiplicidade das redes por uma totalidade que não existe.
Como o mercado das drogas é global e atravessado por objetivos semelhantes, podemos identificar práticas comuns entre os vários tipos de grupos que participam dele, mas é importante que as definições utilizadas estejam em sintonia com os processos que as entabularam.
MARCELLI CIPRIANI
De qualquer modo, não identifiquei, até o momento, indícios da existência de um monopólio na fronteira do Paraguai. Pelo contrário, me deparei com um mercado bem mais fragmentado, que conta com vários fornecedores e cujos preços não são tabelados. Além disso, parece haver uma progressiva divisão de trabalho na cadeia distributiva da cocaína e do crack, com grupos especializados em certas funções definindo suas próprias condições (como custos, termos, formas de pagamento, etc.). Apesar de não haver monopólio, o que os pesquisadores vêm indicando é que o PCC figura como um ator privilegiado nesse mercado, pois é capaz de articular contatos de qualidade, além de oferecer muitos recursos e vantagens que facilitam as cooperações e potencializam os negócios.