A transferência de um delegado da Polícia Civil se tornou tema de embate na Justiça em Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo. O titular da Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) do município, Vinicius Lourenço de Assunção, ingressou com mandado de segurança para permanecer na cidade. A alegação do policial é de que a determinação de transferência para Lajeado — cidade a cerca de 30 quilômetros — se deu após reivindicar publicamente reforço de agentes e que isso gerou perseguição.
O delegado responde a sindicância na Corregedoria da Polícia Civil por suposta falta disciplinar. A chefia da Polícia Civil contesta a argumentação e sustenta que a remoção foi uma decisão técnica, em razão da necessidade de reforço no Vale do Taquari.
No dia 30 de junho, o juiz João Francisco Goulart Borges, de Venâncio Aires, determinou, em caráter liminar (de urgência), a suspensão da remoção do delegado. A solicitação ainda será julgada pelo Judiciário, após manifestação dos envolvidos. Até o momento, a liminar segue valendo, e o delegado permanece na cidade.
No despacho, o magistrado considerou que não percebe “interesse público no ato de remoção”, por haver déficit de servidores “justamente na DPPA de Venâncio Aires”.
Zero Hora entrou em contato com Assunção sobre a sua tentativa de remoção. O policial informou que não se pronunciará sobre os fatos e “aguardará manifestação formal da chefia de Polícia sobre o seu caso”. O delegado afirmou ainda que “confia na Justiça e no órgão corregedor da Polícia Civil, que irão analisar os fatos e estabelecerem a verdade”. Por fim, disse ainda que “a decisão judicial que o mantém em Venâncio Aires é irretocável e deverá ser fielmente cumprida, sem causar embaraço ao regular desfecho do processo judicial e disciplinar a que está sendo submetido”.
O chefe da Polícia Civil, delegado Fernando Sodré, afirma que a decisão de transferência de Assunção obedeceu critérios técnicos e foi motivada pela situação das enchentes. Sobre eventual conclusão da Justiça acerca do caso, garantiu que a instituição "vai respeitar a decisão judicial".
— Foi uma remoção técnica. Precisamos colocar mais um delegado em Lajeado, que foi uma cidade muito atingida pelos problemas climáticos. Quando vier a nova turma, a gente coloca um outro delegado na cidade. A DPPA de Venâncio Aires tem um movimento de ocorrências, de prisões, muito baixo. Então, é muito mais importante ter uma equipe de plantão em Lajeado, que tem um movimento imenso, que atende a região toda, do que a delegacia de Venâncio. Temos DPPA em Santa Cruz do Sul. Precisamos remover o delegado e foi ele o escolhido. A questão toda é técnica — afirma.
O chefe de polícia sustenta que a tentativa de transferência do delegado e a sindicância que ele responde são situações distintas, sem relação. A Corregedoria da Polícia Civil está analisando a conduta de Assunção para apurar se ele cometeu alguma falta disciplinar.
— São duas questões separadas. Primeiro a apuração disciplinar, pelas manifestações, uso de meios políticos não seguindo o canal hierárquico. Está sendo apurado pela corregedoria. Isso é uma questão. A remoção dele é porque temos um problema em Lajeado muito sério, decorrente do desastre climático. Temos um plantão, que atende toda a região, e tem dois delegados. Precisamos colocar alguém lá. A cidade mais próxima, que permite, é Venâncio Aires. A DPPA lá tem movimento baixo de flagrante: um, em média, a cada três dias. Lajeado tem três, quatro vezes esse volume. Todas as cidades na volta de Lajeado estão com problemas. Os delegados lá estão envolvidos não só no trabalho de polícia, como na reconstrução. Ele é o mais simples de remover para lá, ele pode até morar em Venâncio Aires, se quiser — diz Sodré.
Sobre a alegação do delegado de que a decisão envolveria espécie de retaliação por ele ter se manifestado contra a falta de servidores publicamente na imprensa e buscado auxílio de políticos, Sodré nega que tenha essa motivação.
— Ele não é o único delegado que reclama que tem pouco agente. A questão disciplinar beira certa insubordinação, mas isso quem vai analisar é a corregedoria. O problema é o seguinte: temos de escolher um delegado para colocar lá. E ele é o que está mais perto. Vou tirar delegado de onde? De Estrela? De outra cidade grande? Vou tirar de onde dá para tirar. Venâncio Aires tem dois delegados, e um está na DPPA, que tem pouco movimento. Tivemos de remover o delegado de lá. A administração não pode ficar submetida as idiossincrasias de seus delegados e agentes. O cara é servidor público, não é delegado de Venâncio Aires, é delegado de polícia. Quem vai dizer que não é necessário em Lajeado? É só olhar a região. Ele está alegando um direito de ficar lá, que não existe para ninguém, para nenhum de nós — afirma o delegado.
Desentendimento em reunião
A alegação do delegado no pedido encaminhado ao Judiciário é de que a DPPA vinha sofrendo há anos com a carência de agentes para cumprir o esquema de plantão. Em geral, os servidores costumam fazer escalas de 24 horas de trabalho e 72 horas de folga. Com quatro policiais, segundo o relatado pelo delegado, cada plantão conta com somente um servidor que é responsável por funções como atendimento do público e a locais de crime, registro de ocorrência, flagrantes e transporte de presos. Em fevereiro deste ano, um policial foi removido, deixando a delegacia com três servidores lotados, além do delegado. Essa situação foi abordada publicamente por Assunção, em entrevistas à imprensa local e regional.
Conforme o relato do titular da DPPA apresentado à Justiça, no fim de março, após ter manifestado diversas vezes sobre a situação, foi chamado até o gabinete do diretor do Departamento de Polícia do Interior (DPI), delegado Anderson Spier, para uma reunião. Assunção narrou no pedido ao Judiciário que, “antes de ter proferido uma palavra sequer, foi recebido aos berros por seu superior, que passou a tratá-lo de maneira absolutamente hostil e desrespeitosa, chegando ao ponto de insultá-lo verbalmente”.
O policial relata, segundo o mandado de segurança, ter exigido tratamento respeitoso e que o superior “absolutamente descontrolado, deu um murro na mesa e passou a elevar ainda mais o seu tom de voz”. A situação teria sido apaziguada por outro delegado que acompanhava a reunião.
Questionado sobre o conflito que teria ocorrido entre os delegados, o chefe da Polícia Civil afirmou que tomou conhecimento da situação, mas com ótica diferente.
— Chegou ao conhecimento da chefia que houve desentendimento com ele e o diretor por uma insubordinação do delegado. O diretor não pode se submeter a uma agressão verbal, o delegado dizer que não vai cumprir, não vai respeitar. Ser delegado lhe dá autonomia nos inquéritos. Não autonomia para desrespeitar uma decisão administrativa do diretor — diz Sodré.
O diretor do DPI, delegado Anderson Spier, foi procurado pela reportagem, e optou por não se manifestar neste momento.
"Punição antecipada"
Na decisão liminar, o juiz João Francisco Goulart Borges pondera que a mudança na lotação de um servidor público é um ato administrativo e que os componentes do quadro funcional podem ser remanejados “com base nos critérios de conveniência e oportunidade, desde que o faça mediante devida motivação, que não se revele abusiva ou indiscriminada, sob pena de caracterização de desvio de finalidade”. O magistrado pondera ainda que “qualquer servidor público deve respeitar seus superiores hierárquicos, mas a recíproca também é verdadeira".
Sobre a tentativa de transferência, o juiz entendeu que “a remoção ganha ares de punição antecipada”. Isso porque a decisão veio acompanhada da citação para responder sindicância administrativa para apurar a falta funcional.
Segundo o magistrado, a “remoção ocorreu com motivação excessivamente genérica e abstrata, inviabilizando, inclusive, possíveis questionamentos sobre a sua legitimidade, ganhando, como se disse, ares de punição antecipada e sem direito à defesa, logo após os fatos ocorridos na reunião convocada pela autoridade impetrada e que estão sob investigação em sindicância administrativa que mandou instaurar”.
Abaixo-assinado
O prefeito de Venâncio Aires, Jarbas da Rosa, afirma que participou do movimento para obter mais agentes para o município, e que a transferência de Assunção gerou mobilização da comunidade. Além do embate jurídico, um abaixo-assinado foi divulgado pelas redes sociais, direcionado ao governo do Estado, e ao chefe da Polícia Civil, pedindo a reintegração do delegado. Nesta sexta-feira (5), o pedido contava com 764 participantes.
— A gente acompanha com muita preocupação. Isso já é algo de longo tempo, que o delegado vem solicitando apoio, com relação à falta de profissionais. A delegacia chegou a fechar. Isso nos provocou sensação de insegurança. Os casos de flagrantes, de atendimentos de urgência, eram realizados em Santa Cruz do Sul, a 30 quilômetros. Além de Venâncio Aires, que tem 70 mil habitantes, a nossa delegacia atende Boqueirão do Leão e Mato Leitão. Então, vem essa remoção do delegado, com a justificativa dos eventos climáticos. Venâncio Aires também foi duramente atingida pelos eventos climáticos. A gente entende que isso sugere alguma retaliação ao delegado, que se insurgiu à instituição, tanto que está respondendo uma sindicância interna — afirma o prefeito.
Passo a passo
- Início de março — alegando falta de servidores para cumprir a escala, o delegado Vinicius Lourenço de Assunção afirmou publicamente que poderia ter de deixar a DPPA de Venâncio Aires fechada nos fins de semana. Essa situação chegou a ocorrer. O delegado informou no pedido ao Judiciário que seguiu cobrando uma resposta de suas chefias, mas que não houve solução.
- 19 de março — Assunção se reuniu com o prefeito de Venâncio Aires, Jarbas da Rosa, e com o deputado estadual Airton Artus, sobre a situação. O delegado encaminhou um ofício ao parlamentar e o documento foi protocolado pelos políticos na chefia da Secretaria da Segurança Pública do Estado. A situação gerou desconforto institucional, já que a ação foi vista como desrespeito à hierarquia da corporação.
- 25 de março — o Ministério Público encaminhou recomendação à Chefia da Polícia Civil para a nomeação de, ao menos, dois agentes para a DPPA de Venâncio Aires. No documento, o MP argumenta que a delegacia perdeu cinco agentes em cinco anos.
- 26 de março — ocorreu reunião entre Assunção e o diretor do Departamento de Polícia do Interior (DPI), delegado Anderson Spier, em Porto Alegre, na qual houve o desentendimento entre os dois.
- 11 de abril — uma policial se apresentou em Venâncio Aires como reforço temporário para o plantão. Até o momento, a delegacia continua com esse reforço. Segundo o promotor Pedro Rui da Fontoura Porto, o DPI vem mantendo quatro policiais em serviço na DPPA, “ou seja, vem mantendo ainda que de modo provisório, com reforço policial, o atendimento em tempo integral à população, de modo que, ao menos parcialmente e no mais relevante, foi atendida a recomendação”.
- 18 de abril - O diretor do DPI, delegado Anderson Spier encaminhou à chefia da Polícia Civil resposta sobre a recomendação, na qual informa que a DPPA de Venâncio Aires registra, em média, 13 ocorrências por dia e um flagrante a cada três dias. No mesmo documento, o delegado informa que “o pedido foi devidamente registrado para em momento oportuno ser analisada a viabilidade de atendimento”, e que no atual momento “não há concurso para os cargos de escrivão e inspetor em andamento, o que dificulta o incremento de efetivo policial”.
- 28 de junho — Assunção foi informado pelo delegado regional, Luciano Menezes, de que havia sido transferido para Lajeado, como delegado plantonista. Após essa informação, o delegado ingressou com mandado de segurança no Judiciário. Ele responde na Corregedoria da Polícia Civil a uma sindicância por suposta infração administrativa.