Quais as políticas públicas que mais deram certo no combate à violência? Foi em busca de respostas que um especialista no assunto, o gaúcho Alberto Kopittke, se debruçou sobre 31 mil artigos produzidos por experts em segurança pública no mundo inteiro. O resultado, que lhe consumiu quatro anos de estudos, é o livro Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências – O que Funciona e o que Não Funciona na Prevenção da Violência, um cartapácio de 811 páginas com lançamento neste sábado (1/7) em Porto Alegre.
Formado em Direito, mestre em Ciências Criminais e doutor em Políticas Públicas, Kopittke é consultor em Segurança Cidadã no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), onde ajudou a construir a plataforma de Evidências em Segurança e Justiça, uma das bases do livro. Na carreira pública, assessorou o Ministério da Justiça e foi secretário municipal de Segurança Pública no município de Canoas. É atualmente diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, que presta consultoria em segurança pública para diversas prefeituras, tendo conseguido reduzir a violência na maioria desses locais. Este é seu terceiro livro.
No que a segurança pública baseada em evidências é diferente da segurança pública que é posta em prática atualmente?
Não podemos mais desperdiçar o dinheiro público fazendo coisas que não funcionam na segurança. Fazer patrulhas abrangentes, atender a chamados, investigar crimes isoladamente e prender indivíduos não reduz a violência na sociedade. A Segurança Pública Baseada em Evidências (SPBE) toma decisões baseadas nas evidências que já foram produzidas ao redor do mundo e no Brasil sobre o que funcionou e o que não funcionou para reduzir a violência. Existe hoje muito conhecimento sobre programas de prevenção comportamental, urbanismo, policiamento, Justiça e tratamento penal que realmente funcionam. A SPBE engloba muitas outras áreas além da polícia e da Justiça, e essas áreas passam a atuar de forma mais proativa, focada e integrada para conseguirem melhores resultados. No Brasil, isso ainda é praticamente desconhecido.
O senhor revisou a produção científica sobre segurança pública para realizar seu livro. Qual o objetivo de reservar tanto tempo e paciência para efetivar uma obra?
O Brasil perdeu mais de 1,5 milhão de vidas para a violência nos últimos 30 anos. Superar essa epidemia precisa ser uma prioridade nacional. Para isso, é preciso saber o que funciona e não reproduzir ideologias. Meu livro apresenta a sistematização das mais importantes evidências de estudos experimentais da criminologia contemporânea. Até então se dizia que o Brasil não tinha evidências nessa área, o que é apenas parcialmente verdade, porque encontrei 41 estudos de alta qualidade metodológica realizados no Brasil. É um sinal de que uma nova visão de segurança está chegando ao país.
Desde os tempos de Leonel Brizola, as escolas de turno integral são consideradas modelo para afastar jovens do crime. O senhor tem dúvidas sobre a eficácia desse sistema. Explique melhor, por favor.
Há uma visão simplista de que a educação é a solução para o problema da violência. Novamente, trata-se de uma verdade parcial. Muitas pesquisas mostram que precisamos de bons programas de prevenção à violência, inclusive melhorar a qualidade da educação. Escolas de tempo integral produzem bons resultados preventivos, mas exigem recursos expressivos e, por isso, são difíceis de universalizar. Já programas de prevenção estruturados, permanentes e em grande escala podem ser aplicados imediatamente, como aliás os municípios de Lajeado, Santa Cruz do Sul e Rio Grande estão fazendo, com estratégias que as evidências dizem que funcionam. Entre elas, a educação socioemocional, mindfulness, ou atenção plena, e práticas restaurativas na educação infantil e no Ensino Fundamental.
O Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd) é outro bastante popular entre os governos. Mas o senhor coloca que, via de regra, a prevenção escolar ao uso de álcool não funciona.
A prevenção geral ao uso abusivo de drogas ainda é um grande desafio. A maioria dos programas não consegue bons resultados e muitos deles acabam provocando efeito colateral, isto é, aumentam o uso, porque despertam curiosidade. O Proerd é um exemplo de como é difícil avançar no uso de evidências. Professores, alunos, pais e os policiais entrevistados manifestam satisfação com o programa. O problema é que resultados de políticas públicas precisam ser avaliados com amostras aleatórias e com grupo de controle. Experimento científico realizado pela Polícia Militar de São Paulo descobriu que jovens que participaram do Proerd não consomem menos drogas do que aqueles que não participaram. O Proerd, no entanto, tem um grande valor por aproximar os policiais da comunidade.
Não é correto esperar que os policiais resolvam o problema da segurança no Brasil, porque as causas do crime começam muito antes daquilo que a polícia pode alcançar. Dezenas de estudos mostram que programas de treinamento para pais, mães e cuidadores reduzem a violência sofrida pelas crianças e previnem a agressividade futura.
O senhor sugere treinamento para pais, para afastar os jovens das drogas lícitas e ilícitas. Como isso pode ser posto em prática?
São raros os governos que realmente investem na prevenção com programas baseados em evidências e em grande escala. Não é correto esperar que os policiais resolvam o problema da segurança no Brasil, porque as causas do crime começam muito antes daquilo que a polícia pode alcançar. Dezenas de estudos mostram que programas de treinamento para pais, mães e cuidadores reduzem a violência sofrida pelas crianças e previnem a agressividade futura. O perfil violento ou negligente dos cuidadores é o maior fator de risco para uma trajetória de violência e criminalidade, enquanto um perfil protetivo, que coloca limites, mas de forma positiva, com afeto e sem violência, é o fator de proteção mais importante, inclusive contra a drogadição e a criminalidade.
E o que fazer com jovens altamente violentos?
Eu mostro no livro evidências produzidas nas últimas décadas que explicam por que alguns jovens se envolvem com a criminalidade e uma pequena parte deles passa a cometer crimes violentos. Também falo sobre os programas que conseguem reduzir a trajetória de violência desses jovens. Sabemos anos antes quais serão os jovens que podemos perder para a violência e, ainda assim, fazemos muito pouco, ou quase nada, para mudar isso.
O senhor defende que programas preventivos são mais baratos e efetivos do que a Justiça Criminal e os presídios. Por quê?
No livro, apresento diversos exemplos que mostram como a grande maioria dos países desenvolvidos investe pesado em prevenção. Eles possuem mais dinheiro do que nós, mas também usam o recurso de maneira mais inteligente. Todas as evidências do mundo mostram que bons programas de prevenção custam uma fração dos gastos do Sistema de Justiça Criminal e do Sistema Prisional – e, mesmo sendo acessíveis, são muito efetivos. É muito melhor você fazer um programa bem completo, mesmo que aparentemente caro, para um jovem que está com comportamentos de risco e sua família, do que ficar enxugando gelo com um sistema de polícia e Justiça que atua de forma reativa.
O senhor ensina que prevenção comportamental e urbanística é fundamental. Cita que a correta iluminação reduz em até 25% o número de crimes cometidos. Gera pertencimento, inclusive durante o dia. Gostaria que lembrasse os casos de Medellín, na Colômbia, e da arquitetura antifurto na Inglaterra.
O urbanismo é uma grande ferramenta para prevenir a violência. Criar espaços urbanos agradáveis, que estimulem a convivência social e a mistura de diferentes classes e grupos sociais é fundamental. O livro traz 30 avaliações feitas ao redor do mundo mostrando que a melhoria da iluminação reduz em torno de 25% os crimes. Medellín é o maior caso de sucesso da América Latina, onde grandes intervenções urbanísticas nas regiões mais empobrecidas, combinadas com uma maior proximidade das comunidades com a Polícia Nacional, fizeram o crime despencar. Na Inglaterra, a construção civil deve seguir diretrizes de prevenção da violência e com isso reduziram 30% os furtos no país. Para cada problema há uma solução, baseada em evidências.
Sobre policiamento comunitário, quais os problemas? A curto prazo, reduz a letalidade policial, mas não dura muito, certo? Teria de vir com intervenções urbanísticas e programas de prevenção de drogas?
Desde os anos 1970 temos evidências que mostram que o policiamento comunitário, como estratégia de policiamento, não consegue reduzir o crime. Você não pode simplesmente colocar o policial dentro de uma comunidade que sofre com o domínio de grupos organizados para fazer policiamento a pé, para se reunir com as lideranças e solucionar os complexos problemas dessas comunidades. Há diversas outras estratégias de policiamento com foco na inteligência e nas lideranças desses grupos que precisam ser aplicadas antes. Em combinação com outros programas de prevenção e urbanismo, claro. O fundamental é absorver os valores que a polícia comunitária defende em qualquer tipo de atuação policial, seja numa operação, numa abordagem, no patrulhamento. O livro mostra que o uso abusivo da força pelas polícias só aumenta a própria violência e a criminalidade.
O senhor é um estudioso da chamada Teoria das Janelas Quebradas. Quais são as virtudes e dos problemas dessa iniciativa?
Em Nova York, o então prefeito Rudolph Giuliani acabou contaminando ideologicamente a ideia sobre janelas quebradas que o próprio chefe de polícia William Bratton aplicou, no início. O centro dessa estratégia é destacar que a polícia não pode se preocupar apenas com tiroteios ou grandes criminosos. O estudo mostrou que muitas comunidades estavam ao mesmo tempo despoliciadas para problemas cotidianos e policiadas excessivamente de forma repressiva. Segundo essa visão, a polícia deve auxiliar os moradores de comunidades nos problemas de perturbação do sossego, furtos, pichações etc. Mas é preciso que outras fiscalizações atuem junto, fazendo uso do direito administrativo e construindo espaços de diálogo para resolver problemas de convivência. As evidências que o livro traz, especialmente vindas dos EUA, mostram que, se a polícia atua com “tolerância zero” para resolver pequenos delitos, a legitimidade das polícias cai. O aprisionamento de pessoas com baixo risco aumenta enormemente, e os índices de segurança não têm qualquer mudança. É como jogar gasolina para apagar um incêndio. Mas, se a polícia atua em parceria com as comunidades e com outros serviços públicos, há uma queda de mais de 25% da criminalidade violenta. E a legitimidade das forças de segurança aumenta.
As evidências, especialmente nos EUA, mostram que, se a polícia atua com ‘tolerância zero’ para pequenos delitos, a legitimidade das polícias cai. A prisão de pessoas com baixo risco aumenta, e os índices de segurança não têm mudança. Mas, se a polícia atua em parceria com as comunidades e outros serviços públicos, há uma queda de mais de 25% da criminalidade violenta. E a legitimidade das forças de segurança aumenta.
O senhor comentou que a abordagem policial reduz em 7% os crimes, mas aumenta em 50% os problemas de saúde mental e em 20% o risco de trajetória criminal. Por quê?
Novamente a experiência de Nova York é mal contada. Nos anos mágicos de 1994 e 1995, quando o crime despencou 40% depois de 20 anos subindo, a polícia não utilizou as abordagens massivamente. A principal ação nesse período inicial foi focar toda a atuação do policiamento ostensivo e dos investigadores no tráfico de armas e na posse de armas ilegais na cidade. As abordagens massivas começaram cinco anos depois e provocaram uma queda de crimes muito pequena, e com muitos danos psicológicos, com aumento de mais de 50% em síndrome do pânico, ansiedade e depressão, especialmente nos jovens de periferia e negros, que são os mais abordados. Provocaram também uma grande aceleração na trajetória criminal daqueles jovens que já estavam em alguma situação de risco, especialmente quando ocorria uso abusivo da força.
O senhor é um especialista em policiamento nos “pontos quentes” das cidades, microterritórios que concentram 50% dos crimes. Fale mais a respeito desses locais.
Em todas as cidades do mundo em que foram feitas pesquisas, metade dos crimes se concentram em aproximadamente 2% a 3% dos microterritórios – isto é, uma casa, um ponto de ônibus, um ponto de uma praça. E as evidências em todo o mundo mostram que a presença fixa de um policial por 15 minutos nesse local é capaz de prevenir crimes por uma hora e meia. Isso faz o policiamento verdadeiramente preventivo e não reativo, apenas atendendo a chamados. Mas, no Brasil, ainda fazemos muito patrulhamento abrangente ou então em pontos fixos de alta visibilidade. Policiamento preventivo é aquele que mais previne crimes, e não necessariamente o que mais faz prisões.
É verdade que prisões de pessoas de baixo risco aumentam a reincidência em crimes e as prisões para criminosos de alto risco diminuem a reincidência?
Hoje sabemos que qualquer tipo de tratamento penal agrava enormemente a trajetória criminal de indivíduos que tinham baixo risco para cometerem novos crimes. Esses indivíduos precisam ser acompanhados fora do sistema prisional. Programas focados na necessidade específica de cada indivíduo, como o uso abusivo de drogas, a impulsividade ou pensamentos distorcidos e o fortalecimento de vínculos com a família são capazes de reduzir a reincidência criminal. Enquanto continuarmos empilhando gente – de diferentes níveis de risco – em locais completamente inadequados e sem programas efetivos, teremos muita dificuldade para reduzir a criminalidade nas ruas.
Enquanto continuarmos empilhando gente – de diferentes níveis de risco – em locais completamente inadequados e sem programas efetivos, teremos muita dificuldade para reduzir a criminalidade nas ruas.
Das cidades em que o senhor presta consultoria, em todas conseguiu reduzir indicadores de violência? Quais das fórmulas ou métodos analisados no livro o senhor costuma indicar mais, quando consultor?
Felizmente, as experiências de que temos participado com o Instituto Cidade Segura em todo o Brasil e em especial no Rio Grande do Sul têm tido muito sucesso. Conseguimos reduzir homicídios. Para isso, nós estimulamos o uso das estratégias de dissuasão focada e gestão por resultados. Sobre roubos, compartilhamos os conhecimentos da estratégia de policiamento em pontos quentes e aspectos urbanísticos. E, para diminuir a perturbação do sossego e melhorar a sensação de segurança, utilizamos a teoria das janelas quebradas para soluções de problemas, com as fiscalizações municipais.
Qual seu objetivo com esse livro?
Manuais como este têm sido utilizados nas grandes faculdades de criminologia do mundo e nas Academias de Polícia, desde a formação básica do início das carreiras policiais até os gestores das instituições. O Brasil está 50 anos atrasado na prevenção à violência. O livro procura superar esse vazio no país, analisando as evidências de 170 programas e estratégias voltadas para reduzir a violência, para qualificar e ampliar a formação dos profissionais e o debate sobre segurança no país.
O lançamento
Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências – O que Funciona e o que Não Funciona na Prevenção da Violência será lançado neste sábado, às 15h30min, no Auditório da OAB Cubo (Avenida Ipiranga, 40), em Porto Alegre. Outras informações em segurancaeevidencias.com.br.