A disputa pelo tráfico de drogas ainda é pano de fundo para a maior parte dos homicídios registrados em Porto Alegre. Dentro desse contexto, alguns conflitos entre grupos criminosos tiveram desdobramentos ao longo dos últimos meses. Mais recentemente, um acirramento entre a facção com berço no bairro Bom Jesus, na Zona Leste, com ramificações pelo Estado, e uma quadrilha que atua em Canoas, está no centro de parte desses crimes, entre eles um esquartejamento.
Para compreender essas disputas de territórios é preciso retornar a acontecimentos anteriores. Em setembro do ano passado, 13 lideranças de organizações criminosas foram transferidas para fora do Estado durante a operação Império da Lei IV. O intuito era justamente estancar a guerra entre facções que havia se acentuado nos meses anteriores, deixando rastro de mortes. As lideranças, enviadas para Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Rondônia, eram apontadas como as responsáveis por ordenar essas execuções.
Entre os transferidos, estavam lideranças da facção com berço na Zona Leste, envolvida nos ataques. Com o isolamento desses criminosos, que tinha justamente o objetivo de reduzir o impacto das ordens deles do lado fora, segundo investigações, houve ascensão de outro apenado dentro da facção, natural de Canoas. Em julho de 2017, quando estava no Presídio Central, foi um dos 27 presos transferidos para penitenciárias federais durante a Operação Pulso Firme, mas retornou em julho de 2020 por decisão judicial.
Com a mudança de liderança, novos homicídios voltaram a ser registrados. Um dos conflitos envolvia uma disputa em Porto Alegre com criminosos que atuam na Vila Jardim, mas atualmente teria arrefecido. Outra guerra, que segue acentuada, tem de um lado a facção da Bom Jesus e de outro uma quadrilha de Canoas, formada no bairro Mathias Velho. O grupo é integrado por criminosos dissidentes da facção rival. Essa quadrilha recebe apoio de traficantes da Cruzeiro, ampliando os conflitos.
A disputa em Canoas estaria por trás, por exemplo, do esquartejamento ocorrido no início deste mês, no bairro Nonoai. O corpo de um homem, ainda não identificado, foi abandonado na Rua Xavier da Cunha dentro de três sacos plásticos grandes. A suspeita é de que vítima seja um morador de Canoas. A área, conhecida como Cantão, onde o cadáver foi abandonado é dominada pelo grupo que atua na Vila Cruzeiro, e presta apoio à quadrilha de Canoas. Seria uma espécie de recado aos inimigos.
Outra morte que estaria relacionada à mesma disputa ocorreu em dezembro, com requintes de crueldade. A cabeça e o coração de um homem foram encontrados no bairro Santa Tereza, na Zona Sul, dentro de uma mochila. A vítima, que teria vínculos com o grupo da Cruzeiro, estava morando na Zona Norte, onde teria sido arrebatada pelos criminosos da facção da Bom Jesus e executada. O corpo foi encontrado incendiado dentro de um veículo na Vila Cai Cai, no bairro Cavalhada. Depois que as chamas foram controladas pelos bombeiros, foi localizado no porta-malas um corpo esquartejado e sem a cabeça.
Outros conflitos
Nem todas as mortes vinculadas ao tráfico de drogas registradas na Capital neste começo de ano estão relacionadas ao mesmo conflito. Ainda em agosto do ano passado, uma nova guerra acendeu na Zona Norte. De um lado, uma quadrilha com presença na Timbaúva e de outro um núcleo da facção do Vale do Sinos que atua naquela região da Capital. Essa situação desencadeou, por exemplo, quatro mortes em sequência nos bairros Rubem Berta e Mário Quintana em julho. Entre as vítimas, estava uma mulher grávida. Esse episódio levou ao acirramento da guerra naquela região e ainda tem reflexos ali.
No meio disso, um dos criminosos que atuava para o grupo do Vale do Sinos migrou para a facção com berço no Bairro Bom Jesus, e a guerra se expandiu. Na noite da última segunda-feira, três mortes foram registradas nos bairros Rubem Berta e Sarandi.
— Algumas mortes que estão ocorrendo na Zona Norte ainda têm relação com isso, com algo que iniciou lá em agosto. Arrefeceu bastante, só que ainda tem alguns pontos que acontecem que tem relação com isso — explica o delegado Eibert Moreira Neto, que está em fase de transição da direção da Divisão de Homicídios para o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic).
Apesar das ações desencadeadas pela polícia, que conseguiu frear parte dos conflitos entre os grupos, Porto Alegre fechou o ano com aumento de 30,1% nos homicídios. Por outro lado, o primeiro mês de 2023 apresenta um cenário diferente, com queda. Os dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado apontam redução de 26 para 21 assassinatos em janeiro deste ano na Capital.
Um dos casos que despertou a atenção no primeiro mês do ano foi a execução de três jovens, com idade entre 17 e 24 anos, na Zona Sul. A suspeita é de que este crime envolva outras quadrilhas de menor relevância na disputa pelo tráfico na Capital.
Movimentações
Ainda que cenário de janeiro seja visto como positivo, a polícia também está atenta a possíveis movimentações dentro do sistema prisional, que podem ter reflexo na criminalidade do lado de fora. Entre as movimentações que chamam atenção dos policiais está o fato de que um ex-líder da facção da Bom Jesus foi acolhida pelos rivais dentro do sistema prisional.
Fábio Fogassa, o Alemão Lico, que chegou a ser transferido para fora do Estado, cumpre pena na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Já apontado como um dos principais líderes do grupo criminoso, perdeu prestígio dentro da facção e há cerca de dois anos chegou a ser esfaqueado na cadeia. Desde então, o preso se mantinha isolado dos demais, mas, recentemente, foi acolhido na galeria dos históricos rivais. Um comunicado chegou a ser distribuído entre os faccionados, informando a chegada do preso.
Essa situação levou a polícia a monitorar possíveis movimentações do lado de fora. O preso, segundo investigações, teria comandado o tráfico especialmente na Vila dos Sargentos, na Serraria, zona sul de Porto Alegre, e tinha atuação na Vila Tamanca, na Lomba do Pinheiro. No último domingo, a Brigada Militar entrou em confronto com criminosos na Zona Leste, o que resultou em dois suspeitos mortos pelos PMs. Os brigadianos foram acionados em razão de um tiroteio naquela região da Tamanca. A suspeita é de que o grupo envolvido na troca de tiros com os policiais seja membro da facção da Bom Jesus, que estariam preparados para uma eventual tentativa de tomada de território por parte dos rivais.
Histórico da guerra entre facções na Capital
Após três anos de queda, em março do ano passado a Capital passou a viver um momento de recrudescimento dos homicídios. De um lado, estavam criminosos que dominam o tráfico na Vila Cruzeiro, de outro, a facção que nasceu no Vale do Sinos e se ramificou pelo Estado. Naquele momento, Porto Alegre chegou a ter mais de um homicídio por dia, com total de 37 em março — 16 casos a mais do que no mesmo período de 2021. Foi o mês com o maior número de mortes desse tipo no ano.
Em abril, a polícia conseguiu transferir temporariamente para a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) 10 presos com suspeita de envolvimento nesses conflitos. Entre eles, estavam criminosos apontados como os mandantes dos homicídios, tanto do lado da Vila Cruzeiro, como do Vale do Sinos. Com o isolamento das lideranças e outras ações paralelas, em maio os assassinatos voltaram a cair, fechando em 13 - tinham sido 27 no mesmo período do ano anterior.
Em julho, no entanto, o assassinato de um gerente do tráfico que atuava na Cruzeiro reacendeu a disputa sangrenta. Após essa morte, os rivais decidiram tomar o único ponto que ainda era dominado pelo grupo do Vale do Sinos dentro da Cruzeiro. Isso levou a uma série de conflitos nas proximidades do Postão, até a tomada da área. O grupo da Cruzeiro tomou, na sequência, mais dois pontos dominados pela facção do Vale do Sinos.
A disputa seguiu e ganhou nuances de barbárie, quando um homem foi arrebatado e decapitado. Em 24 de agosto, a vítima teve a cabeça arremessada na calçada da Rua Cruzeiro do Sul, no bairro Santa Tereza. Era uma afronta clara aos criminosos que dominavam o tráfico no local. Zambi Rodrigues Barros, 29 anos, havia sido levado de dentro de casa, no bairro Cavalhada, horas antes do crime.
A violência exacerbada levou a polícia a adotar estratégia diferente naquele momento. Os inquéritos em andamento naquela região da Cruzeiro foram represados. A intenção era conseguir reunir o máximo de provas para identificar não apenas os executores, mas apresentar indícios para responsabilizar quem estava ordenando as execuções.
— Conseguimos fazer um trabalho de coleta de dados, informações e, assim, responsabilizar todos os mandantes, os caras que estavam coordenando os homicídios. Vinham de Viamão, de NH, alguns pontos de atuação deles, e estavam atacando na Cruzeiro — explica o delegado Eibert Moreira Neto.
Em novembro, a Polícia Civil indiciou 13 pessoas pela decapitação de Zambi. Um relatório, com diversas provas, foi produzido indicando a participação de lideranças no crime, o que foi anexado ao pedido de isolamento desses presos. A conclusão da investigação foi divulgada pelo Departamento de Homicídios da Capital. Cinco suspeitos de terem ordenado o assassinato, já recolhidos no sistema prisional gaúcho, foram transferidos e isolados.
— Foi feita a remoção, com lastro probatório para sustentar. Os homicídios que estavam ocorrendo naquela área, decorrente desta guerra, pararam — diz Eibert.
Por fim, Porto Alegre fechou 2022 com acréscimo nos homicídios em nove dos 12 meses do ano. Foram 75 vítimas a mais do que o registrado em 2021.