Foi dentro da própria casa que Sandra (nome fictício), 44 anos, viu seu filho, um menino de 14, receber umas das piores ofensas que ela poderia imaginar. Ao se descobrir transexual, o adolescente viu o carinho que recebia do pai dar lugar a xingamentos homofóbicos, em uma tentativa de reprimir as mudanças que começavam a ocorrer. Dentro de casa, em uma visita do pai, a discussão evoluiu, e o homem agrediu fisicamente outro filho de Sandra. No mesmo dia, ela registrou boletim de ocorrência e pediu medida protetiva para defender a si e aos filhos.
O episódio, que ocorreu no final de 2020, é um retrato dos casos de preconceito racial e contra LGBT+ em Porto Alegre: quase 40% deles é registrado no ambiente familiar ou no trabalho, onde as vítimas supostamente estariam protegidas, em território seguro.
Dos 617 boletins registrados em 2022 na Delegacia de Combate à Intolerância da Capital, 134 ocorreram no âmbito familiar e 106 no local de trabalho. Juntas, os 240 registros somam 38,9% dos casos. Outras 96 ocorreram no meio virtual e 64 em via pública.
O cenário preocupa a titular da DP, delegada Andrea Mattos. Segundo ela, denunciar discriminação já é um passo delicado para muitas vítimas, e se agrava quando envolve pessoas próximas.
— Quando um caso assim se dá num ambiente de convívio da vítima, ela enfrenta ainda mais obstáculos para fazer a denúncia. Em geral, vemos que ela só registra o fato quando lhe causa um desconforto muito grande ou é algo reiterado, porque ela tem muito a perder fazendo essa denúncia. Pode sofrer retaliações em casa e na vizinhança, quando ocorre em um condomínio, por exemplo, e dentro do ambiente de trabalho.
Conforme Andrea, também há uma dificuldade maior para conseguir testemunhas nesses casos.
— São colegas de trabalho que podem não querer se envolver. No ambiente doméstico também é difícil, porque a família pode acabar incentivando a vítima a não registrar, deixar o episódio passar. Quando mesmo assim o registro é feito, a vítima pode ter mais prejuízos, como o afastamento de alguns parentes, por exemplo.
A delegada acredita que os casos são mais frequentes nesses locais porque as pessoas têm intimidade com a vítima, estão mais a vontade, e acabam proferindo as ofensas. Por vezes, falas discriminatórias também são usadas como forma de demarcar uma hierarquia, seja na família ou no trabalho, diz Andrea.
— É preciso que as pessoas estejam atentas, que incentivem a denúncia, que se ofereçam como testemunha quando presenciarem um fato. Não se pode deixar que esse tipo de atitude passe por algo normal, do dia a dia — avalia.
Foi essa a conduta de Sandra, que procurou a polícia após as ofensas recebidas pelo filho, hoje com 16 anos, por parte do pai, de quem ela já havia se separado.
— Eu crio meus filhos sozinha, busco sempre acolher, aprender com eles. Aí vem uma pessoa que nem vive junto conosco ofender, humilhar? Ninguém tem esse direito, nem mesmo o pai. Meu filho é um menino em um corpo de menina, e está buscando se entender, se encontrar. A gente tem de amar e aceitar nossos filhos como são. Sempre vou defendê-los, ainda mais dentro da minha casa, é algo inadmissível — conta a moradora da Capital.
Segundo Sandra, a ofensa ocorreu depois de ela pedir ao pai do adolescente que dividisse com ela os custos de um psicólogo para o garoto, para que ele pudesse receber atendimento.
— Ele ficou brabo e disse que, se eu aceitasse isso, estaria incentivando meu filho a ser lésbica. A gente já vinha explicando a situação há algum tempo, mas ele se negava a aceitar.
A mãe conta que, depois do episódio, o adolecente entrou em um quadro depressivo, pelos insultos e também pela perda de um familiar durante a pandemia.
— Antes, era a menininha dele, sempre foi o xodó. De repente, quando meu filho passou a se entender como menino, o pai se revoltou, passou a xingar. É muito pesado — lembra Sandra.
Depois de quase um ano afastados, em razão de medidas protetivas, pai e filho retomaram contato, conta Sandra. O homem disse ter pesquisado e aceitado a decisão do jovem. Pai e mãe também passaram pela mediação oferecida pela delegacia de intolerância.
Hoje, o adolescente tem acompanhamento psicológico e atendimento voltado para questões da comunidade LGBT+. Segundo Sandra, o período difícil parece ter passado:
— Foram muitas audiências, consultas com psicólogos. O pai disse que pesquisou, entendeu, que mudou a mentalidade. Agora a situação está mais tranquila, mas eu sempre reforço que é preciso amar um filho do jeito que ele é. Meu filho hoje faz tratamento, está mais feliz, mais tranquilo.
Em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, GZH não identifica o nome do adolescente e de demais familiares, para não identificar o jovem menor de idade.
Além do trabalho de investigação dos casos, a delegacia de combate à intolerância também oferece capacitações e palestras sobre preconceito e discriminação. O trabalho já foi realizado em empresas, como imobiliárias e supermercados, e também em condomínios e escolas. O trabalho preventivo é uma das funções da DP.
— Fazemos esse trabalho de conversar com as pessoas, explicar, falamos sobre respeito, empatia. É importante essa conscientização, mas também mostramos que a discriminação é crime e tem consequências — explica Andrea.
Casos de racismo são maioria
Conforme a delegacia, a maior parte dos registros contabilizados tratam de preconceito pela cor da pele. Das 617 ocorrências de 2022, 333 foram registradas como racismo ou injúria racial. Nos dois anos de atuação da DP, implementada em dezembro de 2020, esse tipo de discriminção sobressai em Porto Alegre.
Na avaliação da delegada Andrea, isso não quer dizer que os episódios tenham necessariamente aumentado.
— Acredito que esses casos sempre existiram. O que ocorre é que as vítimas vêm se entendendo como tal, criando consciência de que isso não é algo normal, que vai passar em branco. Além disso, vendo um aumento de registros sempre que há casos de repercussão, as pessoas se identificam com aquilo, têm mais coragem para denunciar — diz a titular da DP.
Entre os casos recentes, ela cita o do cantor Seu Jorge, que foi ofendido durante um show em outubro em Porto Alegre, e o de João Alberto Silveira Freitas, morto por seguranças nas dependências de um hipermercado na zona norte da cidade, em novembro de 2020.
Além disso, os dados também mostram aumento de 22% no número de registros na DP: as denúncias passaram de 502, em 2021, para 617, em 2022.
Como denunciar
Casos de discriminação podem ser denunciados em qualquer delegacia de polícia, ou diretamente na de Combate à Intolerância, que fica na Avenida Presidente Franklin Roosevelt, 981, em Porto Alegre.
Também é possível contatar a equipe ou fazer denúncias pelo telefone e WhatsApp (51) 98595-5034.
Registros também podem ser feitos pelo site Delegacia Online RS ou nos telefones da Polícia Civil, 100 e 181, e pelo WhatsApp (51) 98444-0606.
A Polícia Civil ressalta que imagens, vídeos e demais materiais podem ser anexados às denúncias e ajudam durante as investigações. O sigilo é garantido.