A pauta armamentista sofreu mudanças radicais já nas primeiras horas de 2023, pouco depois de Luiz Inácio Lula da Silva tomar posse como presidente da República. Nos últimos quatro anos, sob o incentivo de Jair Bolsonaro, o país viu o número de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) crescer exponencialmente, e a quantidade de armas em suas mãos ultrapassar a marca de um milhão em 2022. Agora, a nova gestão revoga demandas centrais de armamentistas: estão suspensos temporariamente novos registros de CACs, abertura de clubes de tiro e a permissão para tiro esportivo para civis. As alterações, como ocorre tradicionalmente, dividem especialistas.
Assim, seguindo o que já anunciava na campanha eleitoral, Lula restringiu significativamente medidas pró-armamento liberadas por Bolsonaro. Em seu discurso de posse no Congresso no dia 1º, ele ressaltou seu bordão de que o Brasil "não precisa de armas", mas de "segurança, livros, educação e cultura".
— Estamos revogando os criminosos decretos de acesso a armas e munições que tanta insegurança e mal causaram as famílias brasileiras. O Brasil não quer e não precisa de armas na mão do povo — disse.
Em seu decreto, publicado no dia 2, Lula determina suspensão temporária de novos registros de CACs. Com Bolsonaro, o número de CACs aumentou consideravelmente. Segundo levantamento do jornal Estadão, em quatro anos, o total de pessoas com esse tipo de registro cresceu 474%: passou de 117.467, em 2018, para 673.818 até julho de 2022. Assim, o número de CACs superou o de policiais militares da ativa que atuam no país — cerca de 406 mil. O número também é maior do que o efetivo de 360 mil homens das Forças Armadas.
O decreto também diminuiu o número de armas permitidas a civis, de seis para três, assim como os equipamentos que podem ser adquiridos por CACs, de 30 para 15. A aquisição de armas e de munições de uso restrito por parte do grupo também foi suspensa. Só no RS, o número de armas nas mãos de CACs mais do que dobrou nos últimos quatro anos. Saltou de 65.578 em dezembro de 2018 para 148.526 até julho de 2022.
Uma das medidas de mais impacto é a que restaurou uma regra abandonada pela gestão Bolsonaro. Agora, civis interessados em obter posse de arma (que permite manter o objeto em casa) deverão comprovar a "efetiva necessidade" para a Polícia Federal. Essa comprovação de necessidade havia sido suspensa por iniciativa de Bolsonaro, que passou a pedir apenas uma declaração de necessidade, sem precisar comprovação.
A nova gestão também barrou a abertura de novos clubes e escolas de tiro, segmento que cresceu significativamente nos últimos quatro anos e chegou a marca de 2.066 estabelecimentos no país. Foi suspenso também o "tiro recreativo" nos clubes, que permitia pessoas sem porte de armas ou registro de CACs irem aos estabelecimentos praticar disparos por hobby.
Além disso, CACs foram proibidos de transportar armas municiadas pelas ruas. A autorização, concedida por Bolsonaro, permitia transitar com os equipamentos prontos para uso no deslocamento até clubes de tiro. Na prática, essa medida dava aos CACs uma espécie de porte de arma, sem que precisassem se submeter ao procedimento regular da Polícia Federal para civis.
O documento também determina que um grupo de trabalho apresente nova regulamentação do Estatuto do Desarmamento. Um grupo técnico será criado para elaborar o texto. Os integrantes serão escolhidos em até 30 dias. Depois da escolha, o grupo terá dois meses, prorrogáveis por mais dois, para apresentar o trabalho ao ministro da Justiça, Flávio Dino. Portanto, as suspensões e proibições do decreto devem durar ao menos cinco meses.
As mudanças foram celebradas por institutos como Sou da Paz e Igarapé, que defendem maior controle sobre a liberação de armas à população. Para as entidades, o governo optou por "reconstruir uma política responsável":
— Essas medidas têm o objetivo frear a corrida armamentista que estava em curso, buscando uma política mais responsável na fiscalização e controle de armas. É bastante emblemático que as medidas tenham sido tomadas já no dia 1º, mostra a prioridade que esse governo quer dar para o tema. Além de alterar regras, o decreto busca também organizar decisões que já foram tomadas anteriormente pelo STF em anos anteriores, garantindo a efetividade dessas decisões, o que representa um avanço na política de segurança pública — avalia a diretora executiva do Sou da Paz, Carolina Ricardo.
Uma dessas decisões do Supremo Tribunal Federal, que agora fica restabelecida, se refere ao "tiro recreativo" em clubes. Ao interpretar uma determinação do tribunal, o Setor de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército em São Paulo proibiu que pessoas sem porte de armas ou registro de CACs pratiquem disparos por hobby nos estabelecimentos. No governo Bolsonaro, a proibição havia sido derrubada.
Por outro lado, o pesquisador em Segurança Pública e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), Fabricio Rebelo, considera o decreto inconstitucional.
Mais do que a revogação de regras, esse decreto é uma tentativa de alterar, reescrever o próprio Estatuto do Desarmamento
FABRICIO REBELO
Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes)
— Dá a impressão que o objetivo foi apenas desfazer qualquer coisa feita pelo presidente anterior, sem sequer se preocupar com o que diz a própria lei. Mais do que a revogação de regras, esse decreto é uma tentativa de alterar, reescrever o próprio Estatuto do Desarmamento, mudando dispositivos previstos em lei, que jamais poderiam ser alterados por um decreto. Um deles é o comércio de armas, que consta no estatuto. Do ponto de vista jurídico, é absolutamente inconstitucional. É um revanchismo ideológico, sem qualquer técnica. Além disso, ele ignora o referendo de 2005, em que a população mostrou ser favorável ao comércio de armas.
Rebelo critica especialmente a suspensão do tiro recreativo para civis, que trariam prejuízo econômico ao setor, e a proibição de novos registros de CACs:
— A mudança trará um impacto econômico muito forte em clubes de tiros, que não conseguirão mais se sustentar, irão demitir. No âmbito do tiro esportivo, teremos uma paralisação: as mudanças impedem o registro de novos atletas e suspendem campeonatos e torneios pelo país. Sem nenhuma dúvida, as alterações também trazem uma sensação generalizada de insegurança. Nos últimos anos, vimos que investidas criminosas diminuíram, porque o criminoso, sabendo que ao partir para o confronto corre o risco de se deparar com uma pessoa armada, se sente desestimulado. Agora, se passa o recado de que a população está desarmada.
Ativistas pró-armamento também criticam o retorno da obrigação de comprovar a necessidade de armamento junto a Polícia Federal, argumentando que civis ficariam à mercê da subjetividade de delegados ao optarem por se armar.
— É uma decisão que ficará a cargo do delegado. Uma medida extremamente autoritária, antidemocrática. Sabemos que armas adquiridas legalmente não causam aumento de homicídios, crime que vem caindo no país. Essa é uma narrativa antiga e falsa — defende Rebelo.
No entanto, entidades como o Sou da Paz e ativistas contra o armamento discordam da afirmação do pesquisador. Essa linha de pensamento defende que, apesar de passar uma sensação de maior segurança, armar a população pode levar a ocorrências em que a vítima é rendida e tem o equipamento roubado ou até mesmo causar uma escalada de violência por parte de criminosos, durante um assalto, por exemplo. Além disso, entidades defendem que, ao reagir a uma abordagem, aumentam-se as chances de tiroteio, que pode deixar mais pessoas feridas. O armamento também pode resultar em disparos em momentos de descontrole ou discussões e gerar aumento de casos de feminicídio, argumentam especialistas favoráveis ao maior controle dos itens.
— Foram quatro anos de caos normativo, descontrole na circulação e no comércio de armas e munições, e de incentivo por parte de altas autoridades da República ao armamento da população. Agora, vemos ações pautadas na segurança e bem-estar da população brasileira. São avanços essenciais e devem ser celebrados. E ainda temos bastante coisa por fazer, precisamos tratar de questões ainda não abordadas. Apesar de a mudança ser muito positiva e concreta, temos de manter como prioridade o controle de armas e criar grupos para definir mais regras — explica Carolina, do instituto Sou da Paz.
O decreto de Lula também reduz a quantidade de munições que podem ser adquiridas. As de calibre restrito não poderão ser compradas. As de calibre permitido serão, no máximo 600 por ano. Hoje, os CACs podem comprar 5 mil munições por arma. O documento também determina que pessoas que respondam a inquérito policial ou a ação penal por crime doloso tenham posse ou porte de arma cassados.
Recadastramento junto a PF
Outra mudança é que, agora, todas as armas de fogo registradas no banco de dados Sigma, mantido pelo Exército, devem ser recadastradas e inseridas no Sinarm, o sistema de controle de armas da Polícia Federal. Os CACs, hoje, ficam inscritos no Sigma.
Além disso, o documento obriga os donos de armas a comunicarem imediatamente à polícia e ao Sinarm o extravio, furto, roubo ou recuperação de suas armas.
GZH entrou em contato com a Polícia Federal para falar sobre a mudança, mas a comunicação social da instituição informou que não há "fonte disponível para tratar sobre o tema" no momento.
Segundo o Sou da Paz, a fiscalização feita pelo Exército era insuficiente. No sistema usado, não é possível, por exemplo, extrair informações básicas como o calibre das armas ou para que cidades elas vão, segundo o instituto. A plataforma mostra apenas qual a região militar (como o país é dividido pelo Exército) eles foram.
Há agora essa necessidade de que os armamentos sejam informados e cadastrados também pela PF (...) Será uma estruturação no controle
CAROLINA RICARDO
Sou da Paz
— Hoje se tem uma dificuldade nessa questão do cadastro, porque a PF e as polícias estaduais não conseguem acessar o sistema do Exército. Então, ainda que não se mexa na atribuição de quem fiscaliza e registra as armas de CACs, que segue sendo o Exército, há agora essa necessidade de que os armamentos sejam informados e cadastrados também pela PF. É um ponto muito importante, teremos uma categorização de que armas são essas, onde estão. Será uma estruturação no controle de armas, e aí será possível de fato fiscalizá-las — analisa Carolina.
Para o pesquisador Rebelo, esse controle já é feito pelo Exército, e qualquer nova aquisição ou desvio de armas é fiscalizado.