Após ter salto na aquisição de armamentos no ano passado, o RS mantém os números em crescimento. Na primeira metade deste ano, em média, 54 armas novas foram registradas por dia na Polícia Federal. Ou seja, uma a cada 26 minutos. O tempo encurtou em relação ao mesmo período de 2020, quando a média era de 41 por dia ou uma a cada 35 minutos. O crescimento é de 29% — foram 9.791 neste semestre, enquanto haviam sido 7.579 em 2020. No ranking nacional, o Estado ainda é o segundo, atrás apenas de Minas Gerais.
A elevação da aquisição de arsenais no RS segue tendência nacional. No primeiro semestre, o país teve crescimento de 31% no registro de armas novas em comparação ao mesmo período de 2020. Foram 97.243, enquanto na primeira metade do ano passado tinham sido 73.985. Os dados indicam que a maior parte desses armamentos foi adquirida pelo cidadão comum. No RS, essa categoria representa 86% do total de armas novas — no Brasil é de 78%.
A política do governo Bolsonaro, que flexibilizou o acesso a armas e munições por meio de decretos, como havia prometido em campanha, é apontada como principal fator para o aumento. As alterações colocadas em práticas pelo governo federal dividem as opiniões. De um lado, aqueles que defendem o direito de cada um de se proteger e afirmam que há demanda pelo acesso às armas. De outro, os contrários às medidas, que entendem que gera falsa sensação de segurança e que mais armas trarão aumento da criminalidade.
— Há um estímulo pelo discurso do presidente, que incentiva essa compra de mais armas. Vivemos numa sociedade muito desigual, onde arma circulando aumenta a possibilidade de conflitos que acabam em desfechos fatais. Do ponto de visa prático, a defesa do armamento individual como garantia da segurança é uma privatização. O Estado lava as mãos. E quem tem a arma não tem garantia de segurança. Se torna, muitas vezes, mais visado, e assim essas armas que hoje são legalizadas acabam na mão do crime — avalia o sociólogo, professor de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.
O impacto em crimes como homicídios, feminicídios e latrocínios é um dos pontos que centraliza o debate. O RS vem apresentando queda nesses indicadores. No primeiro semestre de 2021, com redução de 1.068 para 870 casos, teve o menor índice para o período desde 2012, quando os dados destes três tipos de crime passaram a ser contabilizados individualmente. Azevedo entende que não é possível vincular o incremento na aquisição de armas como um dos fatores nessa balança. Avalia que delitos são impactados por diferentes causas, como políticas adotadas e o comportamento das facções.
— Em 2017, o RS teve o pico da criminalidade, num contexto de crise da segurança pública e com confrontos entre grupos criminosos. De lá para cá, houve melhorias das políticas e acomodações dos confrontos. Isso não tem nenhuma relação com número maior de armas em circulação. O aumento de armas em circulação está relacionado com aumentos de homicídios em conflitos domésticos, acidentes envolvendo crianças — analisa.
O aumento de armas em circulação está relacionado com aumentos de homicídios em conflitos domésticos, acidentes envolvendo crianças
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO
Sociólogo
Consultor em segurança e proprietário diretor da Magaldi Escola e Clube e Tiro, Dempsey Magaldi concorda que a arma não pode ser empregada como meio de segurança pública, mas defende o direito da utilização para a defesa pessoal:
— Quem tem porte de arma, não é para resolver problema de segurança pública, nem questões coletivas. Se a tua vida estiver em risco, pode intervir. O problema não é arma, a arma não mata, quem mata é a pessoa que emprega inadequadamente. Orientamos sobre a questão comportamental, de emprego ou não da arma. O não emprego da arma também pode ser determinante para preservar a vida. O porte é especifico à defesa pessoal. Não é defesa do Estado. Não tem ligação com ideologia nem política de segurança.
Mais mulheres
As mudanças de comportamento durante a pandemia também tiveram impacto na ampliação do público que busca adquirir armamentos, observa Dempsey Magaldi, dono de escola de tiro em Porto Alegre. Enquanto em 2020 o consultor via armas de calibres antes proibidos sendo adquiridos por pessoas que já tinham armamentos e considerava esse um dos principais fatores para inflar os dados, neste ano o cenário é diferente.
Percebe incremento de interessados, que desejam comprar a primeira arma e, por isso, necessitam passar pelo treinamento. Alguns relatam terem passado a morar em locais onde a polícia pode demorar a chegar, como em sítios, ou mesmo dizem se sentir mais inseguros ao trocarem apartamentos por casas.
Outro fator que chama a atenção é que parcela significativa dos novos alunos se encontra no público feminino. As mulheres, que antes ocupavam cerca de 20% do total de pessoas que buscavam treinamento na escola e clube de tiro, hoje representam metade. Entre elas, os motivos alegados para decidir adquirir uma arma estão tanto a sensação de insegurança, quanto o fato de algum familiar já ter comprado o armamento e agora as mulheres também quererem habilitação para o uso. Visando especialmente esse público, a escola oferece também aulas de defesa pessoal.
— Damos muita ênfase nisso, de só colocar o emprego da arma se a situação não tiver solução. Pode ser por meio do conhecimento de golpes de arte marcial, de como tentar se livrar de situação de tentativa de estupro, de estrangulamento, por exemplo. O criminoso busca oportunidade — conclui Magaldi.
Aos 41 anos, a administradora Rachel Chiesa, de Porto Alegre, decidiu realizar o treinamento para poder comprar uma arma — o curso é realizado antes de buscar autorização para aquisição junto à Polícia Federal. A decisão veio após sofrer tentativa de assalto, enquanto caminhava pelo bairro Floresta. Tentava chamar uma corrida por aplicativo, quando dois criminosos se aproximaram e anunciaram o assalto. Raquel saiu correndo, sem entregar o celular, mas, depois disso, passou a se sentir mais insegura. Realizou o curso na última semana, com o marido. A turma era composta por nove alunos, sendo quatro mulheres.
Quem tem porte de arma, não é para resolver problema de segurança pública, nem questões coletivas
DEMPSEY MAGALDI
Dono de escola de tiro
— Nunca havia pensado em ter uma arma, mas resolvi fazer por segurança, para me preparar melhor. É um investimento, que não é tão barato. Mas acredito que se paga. A nossa proposta é unicamente a nossa defesa, se for necessário — afirma
No Brasil
O movimento percebido no RS não é diferente do cenário nacional, onde a busca por armas também vem tendo incremento. No primeiro semestre deste ano, o acréscimo foi de 31% no comparativo com o mesmo período de 2020. Alguns Estados mais que dobraram os registros, como Acre, de 450 para 1.332 (196%), Mato Grosso, de 3.100 para 6.998 (125%) e Tocantins, de 533 para 1.165 (118%). Neste ranking de crescimento percentual, o RS fica em 18º lugar.
Somente cinco Estados tiveram queda na aquisição de armas novas: Amapá (61%), Bahia (54%), Distrito Federal (43%), Alagoas (36%) e Rio de Janeiro (15%). Se olharmos somente os dados absolutos, sem comparativo, o RS aparece em segundo lugar, atrás de Minas Gerais.
Entenda
O registro concedido pela PF é o documento, válido por 10 anos, que autoriza o proprietário da arma de fogo a mantê-la em sua residência ou local de trabalho, exclusivamente. A posse é uma autorização diferente do porte, que possibilita ao cidadão andar armado. Existe ainda uma outra categoria, que permite a aquisição de armas. São os caçadores, atiradores e colecionados (CACs) — estes não precisam se credenciar na PF. A autorização, neste caso, é concedida pelo Exército.