O último fim de semana evidenciou, mais uma vez, a brutalidade da violência contra mulheres no Estado. Pelo menos três vítimas foram assassinadas no Rio Grande do Sul. Os crimes aconteceram em Guaíba, na Região Metropolitana, em Araricá, no Vale do Sinos, e em Caxias do Sul, na Serra. Nos três casos, os suspeitos estão presos e a polícia ainda apura as circunstâncias que levaram a estes desfechos trágicos.
Ao longo deste ano, o Estado vem enfrentando o aumento dos feminicídios. De janeiro a outubro, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), foram 89 casos no RS – no mesmo período de 2021, tinham sido 82. Ao contrário de outros crimes, frear o crescimento dos episódios que vitimam mulheres tem sido desafio constante. Neste cenário, a perspectiva é de que 2022 possa superar o total de casos registrados no ano passado, que foi de 97.
A média no ano é de duas mulheres mortas a cada semana, mas este fim de semana concentrou mais ocorrências. Entre sábado e domingo, uma mulher morreu após ser arrastada por um veículo em Caxias do Sul, um policial militar foi preso e é investigado porque teria tentado forjar o suicídio da companheira em Guaíba, e um homem também foi detido por suspeita de matar a ex e fugir com o filho de dois anos no Vale do Sinos.
— Entendo que seja o grande desafio da segurança pública: o enfrentamento à violência contra a mulher. Nesse fim de semana, tivemos várias situações envolvendo feminicídios. Se for analisar o trabalho da Polícia Civil, em todos os casos temos autor conhecido e preso. Seria muito confortável falar que o nosso trabalho foi feito. Isso não é o suficiente. Nosso trabalho nem deveria acontecer. O que gostaríamos é de poder prevenir isso — afirma a diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, delegada Cristiane Ramos.
O incremento das Salas das Margaridas, projeto que cria espaços de acolhimento às vítimas dentro dos plantões, especialmente nos municípios onde não há Delegacia da Mulher, e a capacitação dos policiais são citados pela delegada como medidas que vêm sendo adotadas como forma de tentar ampliar essa prevenção. São meios de buscar fazer com que a vítima consiga acessar a ajuda antes que o crime evolua para algo ainda mais grave. A maioria dos casos de violência doméstica se inicia com abusos psicológicos, até chegar ao ápice. Para evitar esse desfecho, no entendimento da policial, é preciso que a comunidade como um todo contribua.
— Por mais que a polícia faça sua parte, que o Judiciário defira inúmeras medidas protetivas, que tenhamos políticas públicas, como as tornozeleiras eletrônicas, todo esse trabalho não está dando conta. Precisamos de mais ajuda. Depois que a vítima entra para a estatística do feminicídio, é comum ouvir de familiares, vizinhos, que sabiam das agressões, mas preferiam não se meter. Em briga de marido e mulher se mete a colher sim — alerta a delegada.
Isolamento
No ciclo da violência, uma das etapas é justamente o isolamento da vítima. É quando o agressor faz com que a mulher se afaste dos familiares e amigos. São formas de aumentar o controle sobre ela e que fazem com que a mulher tenha mais dificuldade de pedir ajuda. Para além disso, o desconhecimento sobre o ciclo faz com que muitas vezes as pessoas próximas não consigam compreender os motivos que levam a vítima a permanecer naquela relação.
— A mulher está numa situação de dependência emocional, de controle por parte do agressor. Muitas vezes segue na relação por medo, pelas ameaças e porque acredita que não vai acontecer nada pior. Vai aguentando por anos, sofrendo a violência. O apelo que faço é: ajudem, estendam a mão, não desistam dessas mulheres. A mulher não tem culpa. Ela está inserida numa situação de violência complexa, multifatorial. Vive numa cultura machista, sexista. É muito grave — diz a diretora da Dipam.
Dos três fatos registrados, dois suspeitos mantinham ou mantiveram relacionamento com a mulher. Somente no caso da Serra não havia essa relação prévia. O motorista de 72 anos preso por arrastar a vítima até a morte alegou que sofreu uma tentativa de assalto, embora haja suspeita de que ele tenha se desentendido com a mulher que seria garota de programa. A vítima estava vestida apenas com roupas íntimas. A perícia deverá apontar se houve ou não relação sexual entre os dois e confirmar a causa da morte.
Órfãos
Entre os casos registrados no fim de semana, num deles o suspeito de matar a ex-companheira abandonou o filho de dois anos num posto de combustível. Segundo testemunhas ouvidas pela polícia, o menino tinha as roupas sujas de sangue. A suspeita é de que ele tenha presenciado o assassinato da mãe. No ano passado, os feminicídios deixaram pelo menos 129 órfãos no Estado. Além da mãe, 15 perderam o pai, nos casos em que o assassino tirou a própria vida.
— Esses filhos ficam sem referência, sem pai, sem mãe. São vítimas de uma violência brutal — diz a delegada Cristiane.
Medidas protetivas
Das vítimas do fim de semana, nenhuma delas tinha medida protetiva vigente contra o agressor, segundo a polícia. Embora ainda existam casos nos quais as mulheres são vítimas de feminicídio, mesmo com medida protetiva, essa não é a realidade da maioria. No primeiro semestre de 2022, o Judiciário concedeu 60.632 medidas protetivas para mulheres no Estado — média de 335 por dia. No mesmo período, o RS teve 59 feminicídios consumados e 116 tentativas.
Quando a mulher possui medida protetiva, caso o homem descumpra a ordem judicial, ela deve procurar a polícia e notificar o fato. Descumprir a medida protetiva é considerado novo crime, que pode levar à prisão do agressor. Fiscalizar essas medidas para que sejam cumpridas e ampliar a proteção dessas mulheres é o que norteia o projeto Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar, que atualmente atende 114 municípios. Policiais mantêm contato com a vítima, após ela receber a medida protetiva, e realizam visitas regulares.
Coordenador das Patrulhas Maria da Penha, o major Diego Terra explica que atualmente a BM está investindo na ampliação da capacitação dos policiais. Por isso, está sendo incluída a disciplina sobre violência doméstica nos cursos de formação.
— Não é um crime comum. É uma ocorrência especial. Aquilo que tínhamos num curso específico, a ideia é que no futuro todos os policiais tenham essa formação — afirma o major.
Tornozeleira eletrônica
Uma das apostas do Estado para tentar ampliar a efetividade das medidas protetivas são as tornozeleiras eletrônicas. Foi assinado contrato pelo governo no início deste mês para adquirir 2 mil tornozeleiras, que emitirão alertas de aproximação às vítimas por meio de aplicativo de celular.
A ferramenta está entre as iniciativas debatidas pelo Comitê Interinstitucional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que reúne órgãos na busca de ações contra esse tipo de crime.
— Tenho fé que vai nos ajudar a dar mais credibilidade para as medidas protetivas. Que as mulheres consigam pedir proteção, consigam solicitar ajuda do Estado, consigam acessar abrigamento, programa de acompanhamento psicológico e sair desse ciclo da violência. Que possamos salvar a vida dessa mulher — projeta a delegada.
Outro caso
Também no fim de semana, foi descoberto outro caso de feminicídio ocorrido dias antes em Gramado, na Serra. Um homem de 40 anos confessou à polícia ter matado a companheira e um vizinho a marteladas. O motivo do crime teria sido o fato de ele suspeitar que a mulher estava mantendo um caso extraconjugal.
Foram mortos Lidiane Jurema dos Santos Pinto Carvalho, 42, e José Noeli Fogassa da Silva, 76. O homem relatou à polícia que assassinou a mulher na terça-feira (22) à noite e enterrou seu corpo no pátio de casa. Lidiane era natural de Esteio, na Região Metropolitana, mas residia em Gramado. O crime foi descoberto no sábado, após o corpo do idoso ser encontrado.