A sala que recebe três cultos semanais da Igreja Pentecostal Água Viva, no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo, recebeu na manhã desta terça-feira (18) uma cerimônia muito diferente da alegria habitual. No centro do imóvel, Fernando Lopes, nove anos, vítima de uma bala perdida, era velado pela família. Sentados, o pai dele, Edison de Souza Lopes, e a mãe, Eliana Batista dos Santos, se debruçavam, em silêncio, sobre o caixão do menino por boa parte da manhã. A tristeza que pesava sobre eles também mantinha o irmão mais velho, de 12 anos, na outra borda de madeira.
O caçula da família, que ainda tem uma irmã mais velha, morreu por levar um tiro que não era para ele. Uma bala perdida encontrou o carro que o tio de Fernando dirigia na tarde de domingo (16), em Novo Hamburgo, causando ferimentos que abreviaram a vida do pequeno na segunda-feira (17). Os lamentos pelo desfecho trágico dividiam espaço com histórias sendo contadas por professores, amigos e familiares presentes na manhã do velório.
Do lado de fora da capela, um grupo de educadores e assistentes sociais da Associação Meninos e Meninas de Progresso (Ammep), instituição da vizinhança que Fernando frequentava desde os seis anos, se consolavam e juntavam esforços para amparar a família. De uma vaquinha entre eles foi comprada uma bola de futebol, posicionada ao lado do caixão, para ser sepultada junto de Fernando e seu sonho de ser jogador profissional. Ele era gremista, tinha Neymar como inspiração e gostava de ensaiar seu futuro nas quadras sempre que podia.
— Como que vou para a Ammep de novo, se eu sempre ia com ele? — perguntou o irmão mais velho à coordenadora da associação, Fabiane da Silva.
— O Fernando era muito amigo do irmão, se preocupavam muito um com o outro — comenta Fabiane.
Os cerca de 400 colegas de atividades deles no contraturno da escola não tiveram atendimento nesta terça. Um pano preto no portão da instituição sinalizava o luto pela perda de Fernando, estudante do quarto ano na Escola Municipal de Ensino Fundamental Edgard Coelho. As coordenadoras do projeto querem organizar um protesto pedindo por justiça e segurança nos próximos dias.
— Queremos proteção às nossas crianças, essa é a nossa missão social. Que isso não aconteça com mais nenhum menino ou menina de nenhuma comunidade. Não podemos achar isso normal — pediu a assistente social Letícia Cidade Silva, que convivia com Fernando e o irmão dele desde 2017 na Ammep.
Companheiro fiel
Na próxima vez que abrirem as portas para receber as crianças e adolescentes dos seis aos 17 anos, a Ammep terá de lidar com a ausência de Fernando, a tristeza do irmão e de outros amigos, assim como da saudade do vira-lata Jack. O amigo de quatro patas da família era companhia fiel de Fernando e visitante das salas de atividades.
— Entrava sem vermos e circulava por tudo procurando pelo Fernando. Faziam uma festa quando se encontravam, mas não podíamos deixar eles juntos lá dentro, não temos como receber animais de estimação. Então ele precisava levar o Jack até o portão, onde ficava esperando pelo Fernando — relembra a diretora Fabiane.
Na manhã cinza que foi a última de Fernando no bairro Santos Dumont, meia dúzia de outras crianças da mesma idade brincavam com bola, tal qual ele mesmo fizera tantas vezes naquelas ruas. Cada roda de brincadeira era acompanhada de perto por um ou dois vira-latas, menos enérgicos do que Jack, talvez afetados pelos olhares dos adultos presentes, que choravam.
Fernando será sepultado à tarde no Cemitério Jardim da Memória, em Novo Hamburgo.