Em setembro de 2020, Letícia Torquato Pereira, 15 anos, saiu da casa dos avós no Centro Histórico, em Porto Alegre, para ir até a Usina do Gasômetro. Ali se iniciaria a angústia da família, sem notícias do paradeiro dela. Um ano e oito meses depois, a investigação da Polícia Civil concluiu que o sumiço da garota esconde um crime. Dois suspeitos foram indiciados pelo assassinato da adolescente e se tornaram réus por homicídio e ocultação de cadáver.
A apuração do caso aponta que Letícia teria passado os últimos dias de vida acompanhada de duas pessoas, pelas quais também teria sido morta. Ana Cristina Araújo da Rosa, 55 anos, e Jonatha Comeli Fontans, 20, foram indiciados no mês de abril por homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Os dois negam que tenham envolvimento no desaparecimento e no assassinato da adolescente. Os nomes dos investigados foram informados pelo Tribunal de Justiça.
O Ministério Público denunciou os dois por homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima, além da ocultação. A denúncia foi aceita na semana passada e eles se tornaram réus. A mulher foi presa ainda em abril de forma temporária no momento em que deixava a residência de uma testemunha, que havia prestado depoimento à polícia, e teve a prisão convertida em preventiva. Já o homem chegou a ser detido no fim de março, mas na semana passada recebeu o direito de responder ao caso em liberdade. No caso dele, por decisão judicial, está proibido de se aproximar ou buscar contato com testemunhas.
O corpo da garota não chegou a ser encontrado durante a apuração. À frente da investigação do caso, a delegada Sabrina Dóris Teixeira, da Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) afirma que, mesmo sem a localização do cadáver, foi possível concluir que a adolescente foi assassinada e o crime motivado por ciúme:
— No dia em que desapareceu, a Letícia estava no Centro, acompanhada de outro rapaz, quando foi abordada pelos investigados (agora réus), que passaram de carro. Nesse dia, essa mulher (Ana Cristina) agrediu a Letícia porque ela estava tendo um envolvimento afetivo, pode-se dizer, com um ex-namorado dessa mulher.
Segundo a investigação, Fontans já conhecia a adolescente desde criança, por morarem próximos. Em 2020, precisou deixar o local onde residia, no Centro Histórico, e por intermédio de uma amiga teria conhecido Ana Cristina em agosto e ido morar na casa dela, em Cachoeirinha. O sumiço de Letícia aconteceu em 18 de setembro de 2020, numa tarde em que ela disse à avó que iria até a Usina do Gasômetro.
Nos dias posteriores ao desaparecimento, a garota teria permanecido na companhia dos dois. Testemunhas relataram ter visto Letícia embarcar no veículo de Ana Cristina. A polícia não divulga detalhes do local onde eles estiveram juntos, mas afirma, com base no que foi apurado ao longo desse período, que Letícia foi morta e teve o corpo ocultado. Não foi possível descobrir ao longo da investigação em que momento aconteceu a morte, mas a polícia acredita que ela tenha sido assassinada na Região Metropolitana.
— Temos vários elementos que indicam que ela esteve inclusive em outras cidades também, na companhia deles. Ela tinha esperança de retornar para casa. Avisou a avó que voltaria (chegou a telefonar para casa), e não mais voltou. Não perdemos a esperança de localizar o corpo da Letícia. Temos a convicção do envolvimento dos dois, de que tiraram a vida dela. Não descartamos que ela tenha sido morta com arma de fogo ou instrumento contundente. Duas vezes apreendemos com ela (Ana Cristina) tacos de beisebol envoltos de arame farpado. Um desses tacos foi submetido à perícia, diversos materiais genéticos foram encontrados, não sendo possível apontar de quem — diz a delegada.
Quando foram ouvidos durante a investigação, os dois negaram envolvimento no sumiço da adolescente. Segundo a polícia, Fontans apresentou contradições no depoimento e Ana Cristina inicialmente negou que conhecesse Letícia e posteriormente admitiu ter visto a garota uma única vez.
Queima de arquivo
A polícia afirma que os dois investigados estavam também envolvidos com atividades criminosas, vinculadas ao tráfico de drogas. A morte da adolescente teria, além da motivação de ciúme, contexto de queima de arquivo, por ela passar a ter conhecimento sobre a forma como agiam. Sobre o momento em que Letícia foi abordado no Centro, não foram encontradas imagens, mas testemunhas relataram ter visto a adolescente entrando no carro de Ana Cristina. A polícia acredita o que o crime tenha acontecido poucos dias após o desaparecimento.
— Ela frequenta um local com eles. Isso tudo ficou comprovado. Passa os dias posteriores na companhia desses indivíduos, possivelmente coagida. E tem a vida ceifada. Trabalhamos com isso, de que ela foi morta no máximo cinco dias após o desaparecimento. Não podemos divulgar alguns detalhes para não atrapalhar o processo que já está em andamento — afirma a delegada.
Uma das dificuldades da investigação foram as poucas informações que a polícia dispunha no começo sobre as pessoas com quem a adolescente mantinha relações de amizade. A delegada afirma que o medo por parte das testemunhas também tornou a apuração mais morosa. Ao final, o inquérito foi concluído com mais de 1,5 mil páginas.
— Foram inúmeras diligências, buscas em muitos lugares. Sempre que surgia alguma informação sobre algum possível lugar que ela estaria, conferíamos. Tínhamos pouca colaboração de pessoas relacionadas aos investigados. A Letícia não tinha motivo para desaparecer. Ela se sentia muito acolhida e querida pela avó. Tinha uma relação muito próxima com a irmã também. Não teria motivo, se estivesse viva. A família da Letícia está chocada, inconformada com a brutalidade e a gravidade desse delito — diz a delegada.
O processo
O caso atualmente está tramitando na 3ª Vara do Júri da Capital. Após a denúncia ter sido recebida pela Justiça, o processo aguarda a citação dos réus para que eles respondam à acusação. Depois disso, durante a fase de instrução do processo deverão ser ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa. Por último são interrogados os réus.
Réus negam envolvimento
Os advogados Guilherme Moraes e Mateus Marques, que representam Jonatha no processo, encaminharam manifestação onde afirmam que o cliente não possui relação com o sumiço de Letícia e que sempre colaborou com as investigações. Durante a apuração, segundo os advogados, ele prestou sete depoimentos. Confira a nota:
“Em que pese a gravidade dos fatos e a qualificada investigação executada pela Autoridade Policial nestes quase dois anos, a defesa de Jonatha, representada pelos advogados criminalistas Guilherme Moraes e Mateus Marques, considera que ele não possui qualquer envolvimento com o desaparecimento da menina Letícia.
Importante destacar que as provas cruciais do caso – consideradas como importantes e decisivas – utilizadas e apontadas pela Divisão Especial da Criança e do Adolescente da Polícia Civil (DECA), só vieram à tona em decorrência exclusiva dos minuciosos e eficientes esclarecimentos prestados pelo próprio Jonatha.
Nesse sentido, ressalta-se que ele está – desde setembro de 2020 – e continuará, até a legítima elucidação e solução do caso, colaborando e à disposição tanto da Polícia Civil, quanto do Poder Judiciário. Por fim, os procuradores enfatizam que, neste momento, o sigilo processual impede de revelar maiores detalhes para esclarecimento público.”
GZH procurou o Tribunal de Justiça, que informou que a ré Ana Cristina ainda não foi formalmente citada, não tendo, portanto, defesa cadastrada no processo. A reportagem entrou em contato com o advogado Francisco José Rodrigues Alves, que chegou a representar a mulher durante a investigação, e ele informou que seguirá representando a cliente no processo. O advogado nega que ela tenha envolvimento no sumiço e alega que não existem provas da participação dela.
— Existe um grande equívoco nesse inquérito, que foi direcionado pela autoridade policial. Infelizmente, o Ministério Público embarcou nessa situação. E o juiz acabou decretando a prisão preventiva dela. Durante a instrução do processo, vai ser provado que ela não tem relação nenhuma com esse desaparecimento. É isso que a defesa se manifesta. É nesse sentido. Envolveram a Ana Cristina nessa situação e a defesa está tranquila em relação a provar durante o processo a inocência dela. Não consigo vislumbrar nenhum indício da participação dela no desaparecimento dessa menor — afirma o advogado.