Vítimas de violência doméstica com medidas protetivas em vigência estão tendo monitoramento por uma rede de apoio montada em Canoas, na Região Metropolitana. A articulação entre a Vara da Violência Doméstica de Família, a ONG Themis, a UniRitter e as Promotoras Legais Populares (PLPs) permitiu a criação de um projeto para dar suporte às mulheres durante a pandemia.
O monitoramento funciona por meio de uma rotina de atendimento semanal por telefone e aplicativo de mensagens, oferecendo apoio e orientação. De maio de 2020 a setembro de 2021, 304 mulheres foram amparadas pelo projeto.
A coordenadora da área da violência da ONG Themis, Renata Jardim, considera que há uma lacuna identificada dentro do monitoramento da medida protetiva que pode ser vencida com empenho da sociedade civil:
A efetividade (da medida protetiva) passa pelo empoderamento de ela conhecer todos seus direitos, saber como acessá-los e entender que tem uma rede de mulheres que a apoia, que não está sozinha
RENATA JARDIM
ONG Themis
— A Lei Maria da Penha é abrangente, integral e completa, mas há necessidade de não só o Judiciário fazer sua parte, dando celeridade aos pedidos, e a segurança pública, oferecendo espaços mais acolhedores para denúncia. Algumas mulheres não confiam na medida protetiva porque não tem guarda na porta de casa todas as noites. A efetividade passa pelo empoderamento de ela conhecer todos seus direitos, saber como acessá-los e entender que tem uma rede de mulheres que a apoia, que não está sozinha.
Parte significativa das mulheres, mesmo tendo medida protetiva em vigor determinando que o agressor não se aproxime ou entre em contato, seguem sendo vítimas da violência reproduzida pelo agressor, aponta Renata.
Dentro da iniciativa de Canoas, o acompanhamento das vítimas é feito pelas Promotoras Legais Populares, que são lideranças comunitárias capacitadas em noções básicas de Direito, direitos humanos das mulheres, organização do Estado e do Poder Judiciário.
Após uma formação de 80 horas/aula, com apoio da UniRitter, elas atuam voluntariamente em suas comunidades na defesa, orientação e triagem de demandas de mulheres vítimas de violência.
No RS, a ONG Themis ajuda na formação de PLPs em Porto Alegre, Guaíba e Canoas — a última é a única das cidades que tem termo de cooperação entre os órgãos. A oficialização do acordo institui fluxo de monitoramento de mulheres, reconhece e formaliza o trabalho de cada instituição com a rede de apoio de forma articulada, definindo o papel de cada um.
— Recentemente, por conta da pandemia, sentimos necessidade de reforçar medidas e estratégias de monitoramento, montando uma nova tecnologia. Nessas ligações elas recebem orientações de segurança, o que fazer quando acontecer algo, e têm o reforço de todos os serviços que estão à disposição, como Patrulha Maria da Penha — detalha Renata.
O papel das promotoras
Promotora Legal Popular em Canoas, Rosângela Brochado Jesus monitora de 15 a 20 mulheres na cidade e explica que não sabe detalhes sobre a situação de violência — o que faz diferença no contato com a vítima. As promotoras acessam uma lista de nomes e telefones atualizada mensalmente, e fazem contato diversas vezes.
— Muitas vezes, quando ligamos, quem atende é o agressor. Cabe a nós sair daquela situação sem levantar suspeita. Nosso papel é trazer orientações, tentar entender se está acontecendo algo. Ficamos em contato no WhatsApp, elas podem me chamar a qualquer momento. Cria-se um vínculo e abrimos possibilidade para isso, elas precisam saber que têm com quem contar, que não estão sozinhas — explica Rosângela.
Caso se identifique situação de violência ou risco naquele momento, a PLP avisa a Themis que comunica o Judiciário e a polícia. Na avaliação de Rosângela, toda mulher que rompe com o parceiro assim que acontece a primeira agressão consegue mais facilmente sair do contexto de violência.
— Porque ela recebe orientações de cara e consegue identificar mais rápido a gravidade. Estamos ali em momento de escuta. Só escuta, sem julgamento — pontua Rosângela.
Para capacitar as PLPs, a UniRitter criou um curso de atualização sobre a Lei Maria da Penha, que sofreu mudanças em 2019. O objetivo era tirar dúvidas e passar as informações essenciais para auxiliar nos atendimentos. O projeto foi coordenado pela professora do mestrado e curso de Direito da UniRitter Canoas, Carmen Hein Campos. A docente acredita que o trabalho das PLPs consegue estabelecer vínculo de proximidade que o sistema de Justiça não possui, o que eleva o grau de aplicação da Lei Maria da Penha:
— É uma mulher da comunidade, que foi capacitada para isso, tendo contato com outra mulher da comunidade. Nisso as vítimas conseguem dizer o que sentem, quais dificuldades, falar dos medos e isso é passado ao Poder Judiciário.
O relatório com a percepção das promotoras sobre cada atendimento é enviado a Themis e remetido à Vara de Violência Doméstica.
“Te pegam na mão e mostram o caminho”, conta vítima
Uma das mulheres atendidas pela PLP, moradora da Região Metropolitana e que falou com GZH na condição de anonimato, conta que o contato é humanizado, fundamental quando a vítima está sensível e não consegue enxergar saída. Também conseguiu apoio para encontrar moradia, recebeu alimentos e itens de higiene.
A sociedade não está preparada para acolher a mulher.
— Eles te pegam na mão e mostram o caminho, mas eu que decido me ajudar. No momento da dor não temos condição de discernir algumas coisas. A sociedade não está preparada para acolher a mulher — desabafa a vítima.
Reconstruindo a vida longe do agressor, ela considera que a violência bagunça todas as áreas da vida e desafia as mulheres a desconstruir um núcleo familiar e a reconstruir outro, muitas vezes como mães solo.
– Tive muito apoio e o contato segue até hoje, perguntam como estou. Minha demanda era financeira e emocional e recebi olhar empático, muito importante quando toda sociedade te julga – conta a mulher.