Você sabe cozinhar? Entende de jardinagem? Tem formação em elétrica ou noções de computação? Sabe sobre cuidados básicos com animais ou como servir convidados à mesa? Se estiver disposto a compartilhar seus conhecimentos, há vagas na Avenida Rocio, 1.100, na Vila João Pessoa, em Porto Alegre.
Sim, este é o endereço do Presídio Central de Porto Alegre. É lá mesmo que a nova diretora, a major Ana Maria Hermes, primeira mulher a comandar a prisão em 58 anos de existência, precisa de parceria para profissionalizar os presos.
Especialista em operações de choque, a major de 46 anos logo diz o que espera do trabalho na maior e mais populosa prisão do Estado:
— O Central é tido como uma ruína. Parte da nossa estrutura é de 1959. Mas, como escreveu Richard Bach, podemos incendiar as ruínas ou construir através delas um caminho que nos leve à liberdade. Eu prefiro a segunda opção. Vamos construir algo.
Ana Maria não é uma novata nos corredores do Central, que hoje tem nome oficial de Cadeia Pública de Porto Alegre. Entrou lá em 2011. Até 2013, como capitã, foi chefe da sala de visitas. Entre 2018 e 2019, atuou na gestão de projetos e recursos humanos. Em setembro de 2020, assumiu como subdiretora. Em 16 de julho, se tornou a primeira mulher a dirigir o complexo, que hoje tem 3,5 mil detentos.
Usar farda sempre foi o sonho da jovem nascida em Venâncio Aires. No primeiro ano da faculdade de Direito, na Universidade de Santa Cruz do Sul, comentou com um colega, um coronel da Brigada Militar (BM) hoje aposentado, que lamentava não ter servido ao Exército. Ele disse:
— Olha, a BM está reformulando o ingresso de oficiais por meio de curso superior.
Ela arquivou a informação. Formada, fez o primeiro concurso disponível, para a Polícia Civil, mas seguia com olhar direcionado à BM. Depois de cinco anos como inspetora, virou oficial da Brigada.
Sem nenhuma influência familiar, ela tenta explicar a escolha:
— Acho que o dinamismo dessa profissão é uma coisa que preenche minha personalidade. É um caso de amor.
Ana Maria mostra que não teme desafios. Quando foi convidada pelo então diretor do presídio, tenente-coronel Carlos Magno da Silva Vieira, para assumir o lugar dele, pensou não estar preparada psicologicamente, mas respondeu:
— Não pedi, mas não me encolho. se é pra mim, vou desenrolar.
Na verdade, Ana Maria já vinha fazendo a preparação ao longo da carreira.
— Ações de choque sempre me atraíram porque sou estudiosa de movimentos sociais, que chamamos de distúrbios civis. As manifestações sociais são um complexo momento de cidadania em que vários direitos se entrelaçam ali, e sempre foi um nicho em que eu quis me especializar — explica a oficial.
Quando comandava o 35º BPM, em Cachoeira do Sul, em 2014, teve a oportunidade de trabalhar em operações de choque durante a Copa de 2014, no Brasil. Saltou dali para o Curso de Especialização em Operações de Choque, concluído no final daquele ano. Só ela e mais duas policiais gaúchas têm essa formação, feita pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Outras duas têm especialização semelhante feita pela BM.
— No curso, o teu psicológico é levado ao extremo, pois é justamente o policial que vai estar lá numa manifestação social garantindo todos os direitos, ainda que ele esteja sendo atacado. Não importam minhas convicções pessoais nem a agressividade que esteja sendo empregada contra mim. Tenho que estar no meu perfeito equilíbrio como preservadora da paz social — destaca sobre o aprendizado.
Atuação no Rio durante as Olimpíadas
Em 2016, pela Força Nacional de Segurança Pública, Ana Maria atuou no Distrito Federal e no Rio, durante os Jogos Olímpicos. Mas o que da formação em operações de rua ajuda no comando de um presídio? Tudo, diz a major:
— No sistema prisional, nós estamos diante das multidões. Encarceradas, mas multidões. O sentimento de massa, o anonimato, no calor da ocorrência, ele acontece. Operacionalmente, 80% da minha base para atuar aqui dentro foi o curso. Consigo ter uma ideia do quanto psicologicamente a gente precisa perceber as tendências.
Sobre como foi recebida pelos detentos como diretora, a major diz que foi com naturalidade, uma vez que já tinha contato com as representações da prisão. Questionada sobre o perfil atual dos presos, ligados a facções, algo que não existia há 26 anos, quando a BM chegou à administração de cadeias, a oficial explica:
— Não tem diferença em termos de conduta prisional. Eles entendem as diretrizes de convívio. Apresentam maior grau de periculosidade externa, mas a conduta deles se ajusta às nossas normas. Os presos mantêm a palavra deles, com o que se comprometem. Conseguem entender o que é certo ou errado. O que é "não" é não e porque é não. Eles entendem que está sendo negado de forma justa para eles. A BM é uma instituição legalista, nós sempre alicerçamos os nossos sim e os nossos não na legislação. Não é a minha visão como diretora que vale. É aquilo que a lei nos diz que nós temos que fazer. Quando a gente executa o que lei diz, não damos margem para debate.
Ainda sobre facções, Ana Maria destaca um senso comum com o qual discorda. Segundo ela, muito se repete que os presídios, em especial, o Central, formam as facções, colocam os presos nesses grupos. Não, diz ela.
— Os primários, recém entrando no crime, chegam aqui já se declarando de um ou de outro grupo. Não é aqui dentro que ocorre. Eles já chegam com essa organização. Inclusive, no espaço que temos para quem não se declara de nenhuma organização, sobram vagas — afirma a diretora.
Projetos para o Central
A voz da oficial, casada com um tenente-coronel bombeiro militar e mãe de dois filhos — de 23 e 13 anos —, se anima mesmo quando é para falar dos projetos que tem para a prisão.
— São muitos. Mas o principal é profissionalizar meus presos. Vou envidar todos os esforços e preciso que a sociedade civil me ajude para que eles não saiam daqui com as mãos vazias. Quero oficinas, coisas curtas, pois lidamos com presos provisórios, tem rodízio grande. Tem que ser rápido, resumido. Temos espaços aqui que podem ser aproveitados, uma cozinha com boa estrutura. Penso em oficinas de gastronomia, massas, carnes, curso de eletricista, mecânica, construção civil, temos jardim para treinar. Vou atrás de parcerias. Se conseguir algo para mim aí, avisa, que aceito — diz ela.
A diretora entende que além de oferecer tratamento penal (trabalho, aliás, sobre o qual ela destaca a dedicação de servidores da Superintendência dos Serviços Penitenciários), garantir direitos e executar a sentença, é "preciso dar para aqueles que querem uma oportunidade para que seja diferente quando saírem daqui".
— É o maior desafio do sistema prisional brasileiro. É meu grande projeto para a Cadeia Pública de Porto Alegre — finaliza.