Laudo do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) atestou que o policial da reserva José Pedro da Rocha Tavares, 50 anos, em prisão domiciliar pelo assassinato de Maria Elizabeth Rosa Pereira, 65 anos, era incapaz de compreender os atos que cometia à época do crime. A advogada e presidente da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs) foi morta com tiro, no bairro Partenon, na Capital, em abril do ano passado. Enquanto a defesa considera que a perícia prova que o réu não teve a intenção de matá-la, a acusação discorda do resultado da perícia, que pode mudar os rumos do processo.
O laudo, assinado por dois psiquiatras, foi realizado em razão do incidente de insanidade mental – procedimento instaurado pela Justiça para saber justamente se o réu tinha condições de compreender o crime. A perícia leva em conta, além de observação e entrevista do paciente, histórico de internações e medicações.
Em relato aos médicos, Tavares disse que não recorda de quando aconteceu o assassinato. O PM da reserva afirmou só se lembrar de ter acordado no Hospital da Brigada Militar, além de negar que os dois mantivessem um relacionamento – alegou que eram amigos há 17 anos. A investigação apontou que eles mantinham relação havia cerca de duas décadas, mas não residiam na mesma casa.
A análise aponta que Tavares teve a função mental prejudicada por dois eventos traumáticos. O primeiro deles, em 1997, quando sofreu um acidente de carro e o outro, após a morte de Maria Elizabeth, quando teria atirado contra a própria cabeça.
O PM estava aposentado havia quatro anos por tempo de serviço e, segundo consta em decisão da Justiça, fazia uso de remédios antidepressivos e para epilepsia. O laudo aponta que houve “grave piora do estado físico e mental” após o disparo. O documento contraindica que ele seja mantido na prisão, em função do risco para a saúde física e mental.
Para a advogada Andrea Garcia Lobato, que defende Tavares, a perícia confirma que não houve feminicídio (quando a mulher é morta em contexto de gênero). Maria Elizabeth foi encontrada alvejada com um tiro e Tavares também, com um disparo na cabeça. Uma pistola de calibre 9 milímetros, que pertencia ao policial da reserva, foi apreendida. A motivação do crime não ficou esclarecida pela investigação, já que não havia indicativo de brigas. A advogada de Tavares sustenta que o caso se trata de uma fatalidade.
A acusação discorda do resultado da perícia e apresentou argumentos à Justiça para que o documento não seja aceito . “As receitas médicas mais recentes são de 2015 e os demais documentos analisados são posteriores ao crime e, portanto, não se prestam a demonstrar as condições do denunciado”, argumenta o promotor Eugênio Paes Amorim, em nota. O Ministério Público (MP) denunciou Tavares pelo crime de homicídio triplamente qualificado, devido ao motivo torpe, uso de recurso que impossibilitou a defesa da vítima e pelo feminicídio.
A advogada Karla Sampaio, que representa a família da vítima no processo, ressalta que um ano antes do crime o PM da reserva foi considerado pela Brigada Militar como apto para manter o porte de arma de fogo. “Não temos dúvida de que o laudo não será aceito pela justiça como causa para absolver o réu sumariamente, tal como a defesa dele já pediu”, afirmou em nota enviada à reportagem.
A BM informou por nota que a avaliação psicológica de PMs inativos para porte, posse ou manuseio de arma é realizada por psicólogos civis credenciados junto à instituição. A corporação afirmou, ainda, que a avaliação retrata o momento no qual é realizada e que não se descarta que um quadro com alterações comportamentais ou emocionais possa surgir posteriormente à avaliação psicológica. GZH entrou em contato com o IPF sobre o caso e aguarda retorno.
Próximos passos
A partir da análise do laudo e de outros documentos que constam no processo, a Justiça deverá avaliar quais os rumos do processo de agora em diante. Até que o incidente de insanidade mental seja concluído, o caso segue parado, sem realização de audiências.
Se a Justiça entender que réu é mesmo inimputável, caso conclua que ele foi o autor dos fatos, pode determinar, por exemplo, internação ou tratamento. A decisão caberá ao Judiciário, que também pode acatar os argumentos apresentados pela acusação, para não aceitar o resultado da perícia. Outra possibilidade é de que o réu seja inocentado, conforme pediu a defesa dele.
Ainda abalado com o crime, o filho Maria Elizabeth também pediu à reportagem para se manifestar somente por nota. “A família mostra-se também perplexa com o laudo apresentado, mas está confiante no senso de justiça que seguirá norteando esse processo. Do mesmo modo, clama para que seja agendada a reprodução simulada do acontecido, para que se compreenda o que realmente ocorreu”, afirmou Thiago Pereira.
A Justiça autorizou que seja realizada, a pedido da acusação, a reprodução simulada dos fatos. A reconstituição, como a técnica é conhecida popularmente, ainda precisará ser agendada, segundo a 4ª Vara do Júri.
O crime
Na noite anterior ao crime, o irmão do policial militar teria sido chamado por Maria Elizabeth para que fosse até o bairro Partenon, onde eles viviam, porque o companheiro dela não estava querendo tomar uma medicação de uso controlado. Os três teriam permanecido juntos na casa de Tavares até a madrugada. O irmão contou à polícia que deixou o local e, na sequência, ouviu os tiros. A advogada foi atingida por um disparo, assim como o PM da reserva. A investigação concluiu que ele atirou nela e depois tentou se matar.
Confira as manifestações na íntegra
O que diz o MP
Por nota, o promotor Eugênio Paes Amorim discorda do resultado da perícia:
“O Ministério Público impugnou do laudo pericial psiquiátrico por entender que, entre outros motivos, as receitas médicas e os demais documentos apresentados são irrelevantes para o fato em questão. As receitas médicas mais recentes são de 2015 e os demais documentos analisados são posteriores ao crime e, portanto, não se prestam a demonstrar as condições do denunciado.
Dessa forma, o promotor de Justiça Eugênio Paes Amorim destaca que os elementos utilizados pelo perito para elaboração do laudo pericial, bem como aqueles que deixaram de ser colhidos e que se mostraram necessários para que se obtivesse uma conclusão fidedigna sobre o real entendimento do réu sobre o caráter ilícito do fato no momento de sua execução, demonstram a fragilidade do parecer técnico.”
O que diz a assistente de acusação
A advogada Karla Sampaio, que representa a família, questiona alguns pontos do laudo e pede que ele não seja aceito pela Justiça:
“Nós impugnamos com veemência o laudo elaborado pelo IPF. Primeiro, porque o perito desconsiderou completamente o fato de que, menos de 1 ano antes do crime, o José Pedro já havia recebido parecer positivo junto à Brigada Militar para o porte de arma de fogo. Ou seja, ele foi considerado “apto” pela sua própria corporação.
Além disso, cogitou-se o sonambulismo como isenção do crime, o que é outro absurdo, porque um sonâmbulo faz apenas coisas simples: ele anda pela casa, ele abre a geladeira e ele toma um copo de leite. Não existem registros em bibliografia científica de um sonâmbulo cometendo atos complexos, como pegar uma arma, engatilhar a arma, mirar a arma, atirar, engatilhar novamente e atirar contra si.
Não temos dúvida de que o laudo não será aceito pela justiça como causa para absolver o réu sumariamente, tal como a defesa dele já pediu. Por fim, também estamos insistindo há mais de ano que seja agendada a reprodução simulada dos fatos, pois ajudará a esclarecer a dinâmica dos fatos e, especialmente, se houve ou não a participação de outras pessoas. Afinal, foi feito exame residuográfico no réu e resultou negativo, o que nos causa imensa estranheza.”
O que diz a defesa
A advogada Andrea Garcia Lobato afirma que a defesa conseguiu comprovar que o réu nunca teve intenção de matar Maria Elizabeth
“A defesa conseguiu comprovar nos autos que José Pedro em nenhum momento teve intenção de tirar a vida da vítima, sendo totalmente incapaz de discernir os seus atos, como concluído através do laudo oficial do Instituto Psiquiátrico Forense. A defesa desde o início do processo sustenta que não estamos diante de um crime de feminicídio e sim de uma fatalidade, buscando evitar injusta punição para uma pessoa com problemas gravíssimos de saúde e que merece tratamento.”
O que diz a família
O filho Thiago Pereira se diz perplexo com o resultado do laudo:
“A família mostra-se também perplexa com o laudo apresentado, mas está confiante no senso de justiça que seguirá norteando esse processo. Do mesmo modo, clama para que seja agendada a reprodução simulada do acontecido, para que se compreenda o que realmente ocorreu.
Muitas lacunas ainda exigem respostas, inclusive com relação à Brigada Militar, a quem o réu serviu, pois, mesmo sabendo de uma mulher baleada, demorou muito tempo para entrar no local do crime. Havia câmeras, mas pelo visto também não foram sequer periciadas.
Ou seja, urge que se faça a reprodução simulada dos fatos e se entenda o que realmente ocorreu, inclusive se outras pessoas participaram do crime. Quanto ao laudo, a família contesta integralmente e duvida que a justiça o acate.”
O que diz a Brigada Militar
Confira a nota da instituição sobre o caso:
“A avaliação psicológica de policiais militares inativos para porte, posse e manuseio de arma de fogo é realizada por psicólogos civis credenciados junto à BM para este fim, mas externos à instituição. Os instrumentos que devem compor a avaliação psicológica dos PMs inativos são indicados por uma comissão do Departamento de Saúde da Brigada Militar e estão de acordo com as normativas atuais do Conselho Federal de Psicologia e da Polícia Federal.
A avaliação psicológica é um retrato de aspectos cognitivos e de personalidade identificados naquele momento. Não é possível descartar que um quadro com alterações comportamentais ou emocionais tenha surgido ou se desestabilizado durante o lapso temporal entre a avaliação psicológica realizada e o fato.
Os transtornos mentais e comportamentais cursam com remissões e recidivas, podendo haver períodos com ausência de sintomas significativos. O tratamento adequado, em especial a adesão aos psicofármacos, influencia na manifestação da doença.
Em relação à alegada demora no atendimento, a BM informa que não procede. Tão logo o 190 foi acionado, guarnições foram despachadas ao local e, além disso, o próprio irmão do Policial Militar também abordou uma viatura nas proximidades, havendo a presença de PMs no local em menos de 10 minutos.
Como se tratava de ocorrência com emprego de arma de fogo e possível vítima refém e como não se tinha certeza sobre a presença de outras possíveis vítimas no local ou da situação exata no interior da residência, conforme orienta a técnica policial, foi isolada a área, solicitado o reforço de uma equipe especializada de intervenção do BOPE, que compareceu também o mais breve possível.
Tal procedimento padrão, de conter, isolar e estabilizar a crise em ocorrências com possíveis reféns, procura não colocar em risco a vida dos envolvidos e dos policiais até que equipes preparadas para uma entrada na residência com segurança estejam em condições no local.”