Uma investigação interna da Brigada Militar indiciou 27 policiais militares do 24º Batalhão de Polícia Militar, de Alvorada, na Região Metropolitana, por crimes como formação de milícia, corrupção, apropriação de dinheiro ou bens (peculato) e extorsão. Em quase 3 mil páginas, o inquérito que teve mais de um ano de duração detalha a ligação de alguns dos policiais com criminosos da região.
São apontados como participantes nos crimes 24 soldados, dois sargentos e um oficial da corporação, que ocupa o posto de capitão. O número de indiciados é o maior que se tem notícia recente de uma mesma unidade da BM. Quase um quinto do contingente, que é de cerca de 150 PMs, foi indiciado.
A reportagem teve acesso à lista dos crimes imputados a cada um dos militares. Além deles, outras oito pessoas que não são da corporação foram indiciadas, incluindo um guarda municipal também de Alvorada.
Entre os 42 crimes, o de formação de milícia é o que mais chama atenção. Cinco policiais militares foram indiciados pelo delito. Trecho do inquérito policial militar (IPM) afirma que “com utilização de armas de fogo, realizariam extorsões a traficantes em pontos de venda de entorpecentes":
“Constituíram, integraram e mantiveram organização paramilitar, com o fito de praticar extorsões e outros crime”, diz outra parte da investigação.
Quatro pessoas que não são da BM são apontadas como participantes no esquema de milícia. Duas delas teriam agredido um homem após obter a informação de que a casa em que habitava escondia armas, drogas e dinheiro. A investigação afirma que a dupla portava “armas de fogo, em ação típica de milícia privada”.
Em outra ocasião, três soldados teriam se apropriado de valores do tráfico de drogas em uma ocorrência. O inquérito narra que os policiais abordaram um suspeito em uma rua do bairro Sumaré, em Alvorada. Encontraram com ele pequenas porções de maconha, cocaína e crack. Mas a investigação aponta que as drogas teriam sido repartidas entre os soldados, em vez de apreendidas, e cada um teria ficado com o equivalente a R$ 70 em dinheiro.
Há outros 15 casos no inquérito em que situações semelhantes, de apropriação de bens apreendidos, são descritos.
Em uma dessas, dois soldados pararam um Hyundai HB20 em que o motorista não tinha carteira de habilitação. No porta-luvas, segundo a investigação, havia R$ 2,3 mil em espécie, mas foram apresentados na delegacia somente R$ 1,6 mil. Conforme o IPM, o fato “evidencia a subtração, pelos policiais militares, de valor entre R$ 700,00 e R$ 800,00". Nessa mesma ocorrência, o motorista do carro ainda teria sido agredido com um pedaço de madeira e apresentou laudos médicos.
Outro trecho pontua um crime que teria sido praticado por policiais militares e supostamente foi encoberto por colegas. Em 13 de dezembro de 2019, um soldado teria saído sob efeito de álcool de uma confraternização do batalhão. A investigação aponta que, “embriagado”, perdeu o controle da caminhonete Nissan Frontier que dirigia, “derrubou um muro e cruzou terrenos de residências”, atingindo um cavalo, que morreu. Depois, “desembarcou, sacou seu armamento e ameaçou os moradores que foram lhe socorrer”.
Após isso, a apuração aponta que um soldado e um sargento, sob orientação do capitão, “deixaram de adotar as providências policiais cabíveis, tais como realização de teste do bafômetro, apresentação de ocorrência policial e demais medidas”.
O mesmo soldado que teria encoberto o crime de colega é apontado no inquérito pelo crime de falsa identidade. Supostamente fazendo bico de segurança particular em um mercado em Canoas, o que não é permitido, ele teria apresentado uma pessoa de sua confiança como se fosse membro da BM, para lhe conferir autoridade. O próprio agente, que atua na comunicação social do batalhão, teria ido fardado ao estabelecimento, segundo o IPM.
Além do tráfico de drogas, o inquérito aponta proximidades de um dos policiais com o jogo do bicho. Segundo o apurado, um soldado trabalhava como coordenador da segurança de uma banca do jogo de Porto Alegre. Além disso, seria o responsável por organizar o recolhimento dos valores por motoboys e auxiliar os chefes a minimizar risco em caso de operações policiais.
Como a BM descobriu ligações
O alerta que deu início à investigação aconteceu em 2018, com a morte de um policial militar que supostamente estava envolvido em um latrocínio (roubo com morte) na região da Serra. Em 12 de dezembro daquele ano, um brigadiano era morto e outro, preso pela Brigada Militar em um cerco após roubo de três residências em uma área pacata entre Caxias do Sul e Nova Petrópolis. O agente detido na ocasião, Diego Silveira Mangia, era lotado no batalhão de Alvorada.
Somado a isso, uma denúncia anônima à corporação apontava que Mangia e ao menos um colega estariam cobrando valores de traficantes para que pudessem seguir com os crimes sem serem presos. A Corregedoria-Geral, com sede em Porto Alegre, decidiu centralizar a investigação devido à gravidade dos fatos. A partir desse momento, uma lupa foi colocada sobre o batalhão, identificando a participação dos demais envolvidos em outras irregularidades.
Em 19 de dezembro de 2019, a Corregedoria foi às ruas para cumprir 30 mandados judiciais de busca e apreensão, numa operação que envolveu 150 policiais. Na ocasião, 11 agentes do batalhão de Alvorada chegaram a ser afastados e cinco presos.
No dia das prisões, o então corregedor, Marcio Galdino, explicou que identificou que apreensões de drogas ou dinheiro não iam para a Polícia Civil, como de praxe. Algumas, iriam para o bolso dos policiais militares:
— Em vez de fazer a entrega na delegacia, eles se apropriavam e, a partir daí, negociavam com os traficantes — contou Galdino, em 2019.
A investigação pelo encarregado na corregedoria chegou ao fim em janeiro de 2021. Em 13 de abril, o então comandante-geral, coronel Rodrigo Mohr Piccon, concordou com o resultado da apuração e repassou o caso ao Tribunal de Justiça Militar (TJM), para a análise das responsabilidades.
Em vez de fazer a entrega na delegacia, eles se apropriavam e, a partir daí, negociavam com os traficantes
MARCIO GALDINO
Declaração do ex-corregedor da Brigada Militar, ainda em 2019, na fase inicial da investigação
Celulares dos envolvidos foram apreendidos, pelos quais a corporação pôde relacionar e identificar conexões entre os investigados. Escutas telefônicas autorizadas pela Justiça também fazem parte do inquérito.
BM se manifesta por nota
A Brigada Militar se manifestou por meio de nota à reportagem. No texto, adiantou que o caderno investigativo conta com mais de 15 volumes, totalizando 2.898 páginas.
A corporação também confirma que foram atribuídos aos indiciados militares diversos tipos de delitos militares, tais como abandono de serviço, corrupção ativa e passiva, violação do sigilo funcional, peculato, prevaricação, crimes previstos no estatuto do desarmamento, abuso de autoridade, dentre outros.
A BM não explicou se os policiais estão afastados. No entanto, a nota afirma que o próximo passo é “realizar a instauração dos processos disciplinares decorrentes da solução do IPM (inquérito policial militar), sob o crivo da ampla defesa e contraditório, visando avaliar a conduta de cada policial militar indiciado”. Também diz que, ao final do processo, os militares poderão sofrer desde uma advertência até a perda do cargo público por meio de exclusão.
A Brigada Militar ainda afirma que “continua contando com a ajuda da comunidade Rio-Grandense no tocante ao envio de denúncias, pois a exemplo desta operação, outras poderão surgir através das constatações e denúncias realizadas pelos cidadãos e enviada ao Comando da Corporação”.
Por fim, a corporação defende a integridade dos seus membros:
“Reforça ainda, não compactuar com desvios de conduta de nenhum integrante, buscando sempre a elucidação de todos os fatos e a prestação de um serviço de excelência, com ética profissional à sociedade.”
O comandante do 24º Batalhão, tenente-coronel Jeferson Marques de Mello, disse à reportagem que não poderia se manifestar, tendo em vista ser uma investigação do comando-geral. Em 2019, quando os policiais foram presos, admitiu que a ocasião era um “baque” para a unidade.
Próximos passos
A Justiça Militar, por meio da assessoria de imprensa, disse que já recebeu os autos, que agora serão repassados para a 1ª Auditoria Militar do Ministério Público. O MP afirmou ainda aguarda vista do inquérito para ter acesso à documentação e, então, poder se manifestar sobre o caso. As acusações contra os civis serão repassadas para a Justiça comum.
Os nomes dos indiciados não estão sendo citados porque a maioria não tem defesa constituída ou contato disponível para que GZH possa ouvir seu contraponto.
Contrapontos
Procurado por GZH, o advogado Jairo Cutinski, que defende o policial Diego Silveira Mangia, preso na Serra no fato que deu início à investigação, disse que não conversou com seu cliente sobre o assunto e, por isso, não irá se manifestar. A reportagem não conseguiu contato com o PM.
Um dos policiais indiciados conversou com a reportagem. Relatou foi afastado há mais de um ano das funções e quer retomar sua vida. Ainda afirmou não ter sido ouvido pelo comando, nem ter sido intimado no processo. Desde 2019, está sem a arma de trabalho.
Sobre o indiciamento do guarda municipal, a prefeitura de Alvorada diz que ainda não foi intimado sobre os fatos e aguarda a mesma “para ter acesso ao teor da denúncia e assim manifestar-se oficialmente”.