Nos anos 1990, o maior atacadista de drogas do Rio Grande do Sul, um gringo da Serra, era um fantasma a assombrar a Polícia Federal (PF). Até que receberam uma dica quente: o sujeito faria uma grande negociação, pessoalmente, nos arredores de Lajeado, no Vale do Taquari.
E lá se foi o agente especial José Antonio Dornelles de Oliveira, da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), com um grupo de colegas. Vigiaram de dentro de uma Kombi, dia e noite, comendo sanduíche, até que a campana resultou na captura do "patrão" do tráfico.
Hoje delegado, Dornelles, 62 anos, foi designado em maio superintendente regional da PF no Rio Grande do Sul, cargo no qual está sendo empossado nesta quarta-feira (7), com a presença do diretor-geral da PF, Rolando Alexandre de Souza. Orgulhoso por chegar ao topo na mesma superintendência em que começou a carreira, dá uma gargalhada saudosa ao lembrar dos tempos de agente, função que exerceu por 22 anos.
— É o melhor serviço que tem — define Dornelles, gaúcho de São Jerônimo, há quatro décadas na PF.
A cerimônia presencial foi restrita a chefias, familiares e poucos convidados, adequada aos tempos de pandemia. O ato foi transmitido ao vivo para os servidores da PF.
Entre os planos de gestão, Dornelles cita a ampliação de postos para confecção de passaportes — a exemplo do que já ocorre em shoppings —, a construção de um novo prédio-sede e, como meta prioritária, descapitalizar as facções criminosas. Confira a entrevista com o novo superintendente, realizada pela internet:
O senhor foi agente por 22 anos e é delegado há 17. O que destacaria desse trabalho de quase 40 anos?
Me orgulho dessa trajetória, que começou como agente chegando a superintendente no mesmo local. Não senti esse tempo passar. O trabalho de agente é o melhor que tem, muita aventura. O episódio que mais me emocionou como policial foi na Operação Toupeira (em 2006, criminosos foram flagrados durante escavação de um túnel que saía de um prédio em direção aos cofres de duas agências bancárias no centro de Porto Alegre. A estimativa é de que furtariam R$ 200 milhões). Quando começamos a tirar os presos do prédio para colocar em um caminhão, as pessoas estavam jogando papel picado das janelas. Um taxista com som potente colocou o Hino Nacional. Foi muito emocionante a população aplaudindo a PF. Tivemos 26 flagrantes e conseguimos condenações por tentativa de furto e crime organizado.
O conceito hoje é de que é, sim, importante apreender (drogas), mas a investigação, já no começo, precisa contemplar a lavagem de dinheiro
Quais foram as principais mudanças na corporação nesse tempo?
Minha primeira delegacia foi a DRE (Delegacia de Repressão a Entorpecentes). Tinha armário de ferro e fichário de papel com nomes e fotos de suspeitos, não tinha computador, flagrante era com máquina de escrever. Sistema de gravação (grampo) era com fita. Terminava a fita, tinha que virar. Em 1998, a PF gaúcha foi o laboratório para a criação e instalação do Guardião, o que deu um salto de qualidade para as operações. Mas o principal é o foco do trabalho: na época, ficávamos felizes quando aprendíamos droga, mas a investigação acabava por ali. O conceito hoje é de que é, sim, importante apreender, mas a investigação, já no começo, precisa contemplar a lavagem de dinheiro.
Quando a apreensão é feita, a investigação da lavagem já está avançada?
Sim. Primeiro prender, e depois começar o trabalho de lavagem, se perdia muitos elementos. Pega lá uma tonelada. Vai evoluir como? Quem é o chefe, onde está o dinheiro? E isso vale para as facções. O chefe não está na vila, anda de Porsche. E a gente gastando energia batendo em beco. Então, toda a investigação — seja de tráfico, contrabando ou corrupção —precisa ter a lavagem junto.
Desde 2018, a PF tem uma coordenação-geral de combate a drogas e facções. Como está o trabalho com facções no RS? Há conversa com forças estaduais?
Temos conversado. A ideia é ter uma Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco), como já existe em outros Estados. Não é fácil, envolve culturas diferentes, mas vemos como evolução. Nenhuma força vai conseguir sozinha. Temos que unir esforços. As facções se unem, por que não a gente? Cada um dentro das suas atribuições. A Polícia Civil dentro da sua experiência, a Brigada Militar na dela, a Susepe, que tem muita informação de facção, com a dela. Já temos isso desenhado. E temos conversado com o secretário (Ranolfo Vieira Júnior, vice-governador e secretário da Segurança).
Mesmo com o avanço dos trabalhos para descapitalizar as facções, elas se rearticulam. É possível como avançar neste trabalho?
Sem dinheiro, o criminoso não compra proteção, não manda matar na rua, não tem dinheiro para mandar o comparsa comprar droga
A polícia faz o seu trabalho, apresenta os bens, pede o sequestro. Dentro de um processo legal eles têm muito recursos para que isso seja devolvido. Mas se nós fizermos a prova bem produzida, descapitaliza e é difícil se reorganizar. Mas quando sai um chefe, surgirá um novo, é inevitável, como na atividade empresarial. É uma luta permanente e com a máxima: siga o dinheiro. Tem um exemplo que é o Fernandinho Beira-Mar. Por que ele ficou tanto tempo comandando o crime, mesmo preso? Porque não se atingiu na época da prisão o patrimônio dele, não se descapitalizou a organização dele. Sem dinheiro, o criminoso não compra proteção, não manda matar na rua, não tem dinheiro para mandar o comparsa comprar droga. É preciso atacar o ápice da pirâmide, a liderança do crime organizado. É a forma de quebrar a organização criminosa.
A suposta politização da PF tem sido muito falada, que a corporação seria usada pelo presidente Jair Bolsonaro para perseguir seus inimigos. Por outro lado, blogueiros e apoiadores do presidente também foram presos pela PF. Como o senhor encara essa situação?
Nunca sofri nenhuma pressão política. É quase impossível, dentro da PF, algum delegado ser forçado a tomar uma decisão em seu inquérito. Nesses 40 anos, não vi nem policial ser removido contra a vontade.
Como a PF está se preparando para combater e investigar as fake news nas eleições deste ano, que terá campanha e pleito atípicos pelos efeitos da pandemia do coronavírus?
Firmamos um protocolo de atuação conjunta. Nossa visão é de de que as fake news vão ser o maior problema. Antes, a gente ia para rua fiscalizar a panfletagem. Hoje, é um clique só. Todas as delegacias foram instadas a fazer planos operacionais. Teremos um centro de comando para atuar durante as eleições em parceria com o Tribunal Regional Eleitoral, Polícia Civil, BM, Ministério Público para buscarmos respostas imediatas. Brasília também vai manter um centro de comando com repasse de informações. As férias do efetivo estão suspensas.
Os candidatos podem ajudar?
É balela o cara achar que vai ficar atrás de um computador e não vai ser descoberto. Podemos demorar, mas vamos achá-lo
É importante a conscientização de todos os candidatos, e que fizessem acordo entre eles para zelar por essa questão junto ao seu eleitorado. O candidato tem de dar o exemplo levantando essa bandeira. É a eleição (para prefeito e vereador) mais conturbada, mais trabalhosa.
É uma investigação difícil a de fake news?
Não é difícil. A gente tem como chegar, e isso deve ficar bem claro a todos: é ilusão o criminoso achar que vai ficar atrás de um computador e não vai ser descoberto. Podemos demorar, mas vamos achá-lo, e ele vai responder. Teremos tecnologias que servirão para ação e prevenção.