O Ministério Público (MP) tenta reverter no Tribunal de Justiça (TJ) o benefício de prisão domiciliar de um homem condenado a 100 anos de prisão por estuprar uma filha e uma enteada. Do tempo de pena, Ivo Francisco da Conceição ficou preso em regime fechado por somente nove meses.
Segundo o MP, o criminoso foi beneficiado por decisão genérica da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre com base em uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça para evitar a contaminação por covid-19 de pessoas com comorbidades nos presídios. Com ele, foram libertados outros 84 detentos da Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan) sem a devida comprovação de necessidade em cada um dos casos. Além disso, promotores não foram ouvidos antes da determinação judicial, emitida em março.
O caso chamou a atenção do MP pela gravidade dos crimes e pelo tempo de condenação. Conforme a juíza Patricia Pereira Krebs Tonet, que condenou Conceição em julgamento de 1º grau, "a pena resultou de abusos sistemáticos, em relação à enteada e à filha, ambas menores de 14 anos, por muito anos". Conforme consta do processo criminal em que Conceição foi condenado, ele teria começado a abusar da enteada quando ela tinha nove anos e da filha, a partir dos seis anos.
São relatados abusos entre 2011 e 2018. Conforme depoimento das vítimas, elas sofreriam ameaças e receberiam dinheiro para não contar nada para a mãe. As revelações foram feitas em dezembro de 2018 e Conceição foi preso preventivamente em junho do ano passado. As duas meninas teriam sido estupradas mesmo sem a mãe e Conceição morarem na mesma casa. Enquanto a mãe trabalhava, ele cuidava das meninas. Como já tinha outra família, ele as levava para a casa dele, onde também ocorreriam abusos.
"Não há, pelo menos neste momento, informações acerca da condição ou comorbidade sofrida por Ivo que o autorize a gozar de prisão domiciliar humanitária prevista nos termos da Recomendação nº 62/2020 do CNJ. Aliás, ainda que portador de doença prévia, é necessário que fique comprovado que o presídio em que se encontra não possui condições de tratá-lo, que não esteja recebendo tratamento médico adequado ou que a condição de saúde em que o apenado se encontre é frágil a ponto de não ter qualquer outra alternativa que não a prisão domiciliar", registrou o procurador Eduardo de Lima Veiga no agravo encaminhado ao TJ após o primeiro recurso do MP ter sido indeferido.
O procurador também destacou no pedido recomendação da Corregedoria-Geral de Justiça para que os magistrados só emitam as decisões de concessão ou não de prisão domiciliar a partir da análise individual de cada processo de execução e não com decisões genéricas, como foi o caso que beneficiou Conceição. O recurso do MP tramita na 6ª Câmara Criminal do TJ. GaúchaZH apurou que Ivo constou na lista da Pecan como enquadrado no grupo de risco por ser hipertenso e diabético.
Juiz escreveu que decisão de prisão domiciliar não gera impunidade
Conceição e outros 84 detentos ganharam o benefício depois de um pedido de providências feito pela Defensoria Pública em março. O juiz Paulo Augusto de Oliveira Irion, da VEC, apreciou a solicitação e emitiu a decisão de prisão domiciliar. O magistrado tratou da situação caótica do sistema prisional e falou do risco da covid-19 para pessoas que já têm outras comorbidades. Em trecho da decisão, o juiz explicou:
"Trata-se de pessoas doentes e portadoras de uma das doenças/moléstias que faz com que se enquadre no grupo de risco, mais propensa a receber o coronavírus, com consequências, diante desta moléstia preexistente, que podem, lamentavelmente, conduzi-las à morte. Assim, que não venha se falar que a presente decisão gera impunidade ou que aumenta o sentimento de impunidade perante a população de bem. NÃO! Não é isto. Esta decisão busca salvar a vida de pessoas presas que se encontram mais propensas a serem contaminadas com o coronavírus e, bem provável, diante das carências de saúde, tanto dentro do sistema prisional como fora dele, levá-las a morte."
A concessão de prisão domiciliar humanitária foi deferida pelo prazo de 90 dias, com a ressalva de que, ao final do período, os detentos deveriam se reapresentar para dar continuidade ao cumprimento da pena. Em 16 de junho, Conceição teve o benefício prorrogado por mais 60 dias pela juíza Sonáli da Cruz Zluhan.
A condenação
- O julgamento de Ivo Francisco Conceição ocorreu em fevereiro deste ano, na 2ª Vara Criminal de Canoas.
- A juíza Patricia Pereira Krebs Tonet registrou em trecho da sentença: "A ausência de freios quanto à satisfação da lascívia do réu era tamanha que a partir dos relatos das vítimas apura-se que por um período ele abusava da filha e da enteada simultaneamente, nos turnos inversos à escola de ambas, uma não sabendo o que se passava à outra. Tudo isso é revelado em detalhes pelas ofendidas."
Contraponto
O que diz Erika Ghazzawi Machado, advogada de Ivo Conceição:
"Não há prova material dos abusos, só depoimento pessoal e testemunhos. A prova é fraca para o tamanho da condenação. O que pesou (no julgamento) foi o emocional, o depoimento da filha e da enteada chorando. O seu Ivo está com tornozeleira em casa. Ele não oferece risco, tem residência fixa e faz tratamento de saúde. Obedece a todos os requisitos da prisão domiciliar. Quando acabar o prazo do benefício, vamos pedir a manutenção para que ele não retorne à prisão. Também já recorremos da condenação."