O sistema Consultas Integradas, o banco de dados mais importante dos órgãos de segurança pública do Estado, foi usado por, pelo menos, um criminoso de dentro do Presídio Central de Porto Alegre. O acesso ocorria por meio do login e da senha de um policial militar, que está sob investigação.
Este é o mote da Operação Miragem, desencadeada na manhã desta quinta-feira (1º) pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco) de Canoas, com apoio do 15º Batalhão de Polícia Militar (BPM). Estão sendo cumpridos 35 mandados de busca e apreensão e 20 de prisão temporária em quatro municípios — na Capital e em Canoas, São Leopoldo e Cachoeirinha. Até as 9h30min, 16 pessoas haviam sido presas.
O Consultas Integradas reúne, por exemplo, informações de todas as pessoas que possuem carteira de identidade, além de dados sobre endereços, condutores e proprietário de veículos, criminosos — presos ou não —, ocorrências e sobre quem visita quem nas cadeias gaúchas.
Instalado em uma cela do Presídio Central, Kelvin Willian Merseburger Ferreira, o Sekão, consultava no banco de dados informações como:
- identificação de veículos, para poder clonar placas dos carros roubados;
- endereços de potenciais vítimas;
- endereços de integrantes de facções adversárias e de pessoas ligadas a eles;
- existência de inquéritos e de processos judiciais;
- relatos de policiais e de testemunhas em ocorrências em que seu grupo estivesse envolvido.
Além disso, é possível que ele tenha compartilhado a senha com companheiros da cadeia — o que amplia o leque de informações sigilosas que podem ter sido pesquisadas.
A polícia solicitou auditorias no Consultas Integradas para verificar tudo que foi acessado a partir da senha do policial militar investigado — cujo nome não foi divulgado. Há uma lista de nomes que estão sendo conferidos e não está descartado que autoridades tenham tido dados pesquisados.
O PM teria usado o sistema por cerca de 30 dias. A senha, que dava acesso irrestrito ao banco de dados, foi bloqueada a pedido da polícia em fevereiro.
Conforme o delegado que comanda a investigação, Thiago Lacerda, da Draco, as circunstâncias em que o login e a senha do PM chegaram ao conhecimento do criminoso ainda estão sendo verificadas. Pode ser que o servidor tenha repassado (ou vendido) os códigos para Kelvin ou também que a senha tenha sido hackeada. A Brigada Militar já está apurando a situação.
Entre os locais alvos de buscas na manhã desta quinta-feira estão celas do Presídio Central, da Penitenciária Estadual de Canoas e da Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos. A polícia também tenta capturar Kelvin, que saiu da prisão em abril para aguardar a colocação de tornozeleira eletrônica.
Em junho, ele colocou o dispositivo, mas, em 1º de julho, ganhou prisão domiciliar e retirou a tornozeleira. Kelvin havia sido preso em flagrante por receptação e tem uma condenação de cinco anos e quatro meses por roubo de veículo.
Uma das pesquisas feitas por Kelvin no Consultas Integradas, por exemplo, foi sobre um assalto em que o grupo usara roupas semelhantes às da Polícia Civil. Em uma troca de mensagens pelo aplicativo WhatsApp, a polícia flagrou a imagem de uma página do sistema com informações sobre a ocorrência, com detalhes de o que as vítimas haviam contado à polícia. Abaixo da imagem, o criminoso escreveu para o comparsa: "Puxei a integrada para ver".
O grupo monitorava ainda ações da BM, usando rádios na mesma frequência da utilizada pela polícia. Por ali, os criminosos sabiam quando era dado alerta sobre um carro roubado por eles.
A organização criminosa também atacava caixas eletrônicos, praticando arrombamentos ou explosões, e há suspeita de que contava com a proteção de PMs. Em um diálogo em que os criminosos combinam um ataque, é dito: "Tem uma viatura da faixa com nós".
Kelvin, conforme a investigação da Draco, usava o Consultas Integradas especialmente para favorecer seus negócios de roubos. Ele consultava veículos que estão registrados no Estado para, depois, encomendar para comparsas que roubassem carros de modelos idênticos, principalmente, nas ruas de São Leopoldo, Canoas, Cachoeirinha e Porto Alegre.
Ou então ele fazia a pesquisa depois dos roubos, em busca de modelos iguais para que as placas pudessem ser copiadas. Estava em funcionamento assim, conforme a investigação, uma engrenagem de roubos e clonagem de veículos que tinha metas mensais e lucrava cerca de R$ 2 mil a R$ 10 mil a cada carro clonado.
As investigações começaram em janeiro, quando duas pessoas foram presas em flagrante por receptação e posse ilegal de arma de fogo. Com a dupla, a polícia apreendeu jammers (sistema usado para bloquear o rastreamento veicular), rádios que monitoravam a frequência usada pela Brigada, placas clonadas, um revólver calibre 38 e cinco veículos — três que haviam sido roubados e dois com suspeita de adulteração de sinal identificador. A partir dos telefones celulares dos dois presos, a Draco começou a esmiuçar o esquema comandado de dentro do Central e que tinha o Consultas Integradas como apoio.
Nos celulares apreendidos ao longo da investigação, foram encontradas mensagens com as encomendas de veículos, com queixas dos ladrões sobre o "chefe" ter enviado outras equipes para fazer roubos também, informações sobre quando o carro roubado chegaria para o responsável pelas clonagens ou sobre onde devia ser entregue ao receptador. A polícia também apreendeu com o grupo notas manchadas de tinta, que seriam provenientes de ataques a caixas eletrônicos.
— A Operação Miragem atinge uma organização criminosa que atua em nível de organização empresarial e que expõe sua periculosidade pelos crimes que comete. Além disso, revela a possibilidade de estreitamento das relações de criminosos com agentes públicos — destacou o delegado Mario Souza, diretor da 2ª Delegacia de Polícia Regional Metropolitana (2ª DPRM).
Os escalões do grupo identificados na Operação Miragem:
- Líder da quadrilha: acessava o Consultas Integradas, fazia as encomendas dando ordens aos subordinados, estipulava metas de roubos e determinava os pagamentos semanais. Também cuidava da contratação de advogados quando parceiros eram presos.
- Ladrões: faziam as abordagens na rua para roubar os carros encomendados.
- Receptadores de objetos pessoais das vítimas: recebiam, para revender, bolsas de marca, celulares roubados, laptops e outros objetos que possuíssem valor econômico.
- Receptadores de pneus e estepes: encomendavam pneus e estepes dos veículos roubados, pagando de R$ 200 a R$ 300 por item.
- Receptadores de veículos: recebiam, para revender, os carros roubados e já clonados, ou seja, já identificados com placas dos veículos pesquisados no Consultas Integradas.
- Clonadores: faziam a confecção das placas dos veículos para clonagem e adulteração de vidros
- Apoiadores: davam suporte às ações, fornecendo munição, armas e locais para esconderijo do grupo.