Com 26 anos de serviço, um comissário da região central do Estado trabalha há uma década sem outro policial civil. Numa cidade de sete mil habitantes, acostumou-se a receber moradores na porta de casa e atender telefonemas a qualquer hora. A realidade se repete em 93 municípios gaúchos, que contam com apenas um agente da Polícia Civil.
Em relação ao mesmo período do ano passado, há mais delegacias de polícia (DP) nesta situação: 21%. Em fevereiro de 2018, levantamento de GaúchaZH mostrou que 77 cidades tinham apenas um agente.
Num contexto de déficit de servidores, a Polícia Civil está mapeando as unidades para identificar quais poderiam ser fechadas. A medida encontra opiniões controversas entre os policiais, representantes da categoria e prefeitos.
Se, por um lado, o trabalho solitário contraria a técnica policial, que prevê pelo menos dois agentes por delegacia, e engessa as investigações, o possível fechamento esbarra no aumento de empecilhos para registros policiais, na função social das unidades e em questões políticas. O estudo está 60% concluído, e a previsão é que seja encerrado em até 15 dias.
Estão sendo levados em conta critérios como índices de criminalidade, tanto incidência de registros em geral, quanto delitos graves, como homicídios, roubos e tráfico de drogas, além do número de habitantes, custos com a manutenção (aluguel, contas de água, luz, telefone) e proximidade de outras delegacias.
Em quase 70% dos municípios — 64 deles — não houve registro de homicídio no ano passado. As cidades somaram 41 assassinatos em 2018. Nenhuma delas teve latrocínio (roubo com morte), segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Nos casos de violência doméstica, foram três feminicídios, 55 estupros e 496 lesões corporais.
Não queremos fechar delegacias. Mas, estamos diante desse déficit histórico. Temos de bem atender a população e pensar nesse servidor sozinho. Queremos definir isso até o fim de março
NADINE ANFLOR
Chefe da Polícia Civil
Com o estudo finalizado, a Polícia Civil pretende analisar junto à SSP as medidas possíveis. No início de julho, 421 agentes se formam. No entanto, há 700 servidores aptos a se aposentar.
— Vamos analisar se lotaremos os novos nessas delegacias com único servidor ou se centralizaremos o atendimento. Não queremos fechar delegacias. Mas estamos diante desse déficit histórico. Temos de bem atender a população e pensar nesse servidor sozinho. Queremos definir isso até o fim de março — afirma a chefe da Polícia Civil, Nadine Anflor.
Segundo a delegada, 87 unidades têm apenas um servidor — seis a menos do que o contabilizado pelo levantamento de GaúchaZH, que ligou para pelo menos cem delegacias. Nadine reconhece que parte dos policiais pode estar em licença. Delegacias em região de fronteira, caso de Aceguá, não devem ser impactadas caso decida-se pelo fechamento de unidades.
— A chefia reconhece o esforço desses policiais, que se empenham. Ter duas pessoas é um absurdo, mas é o mínimo que estamos tentando garantir — explica.
Presidente da Ugeirm Sindicato, que representa agentes da Polícia Civil, Isaac Ortiz defende que DPs não podem funcionar sem o mínimo de três servidores. Acredita que o atendimento poderia ser feito uma vez por semana.
— Policial sozinho não presta bom serviço para a comunidade e ainda corre risco. Limita-se a registrar ocorrência. Tem delegacias que nem precisariam existir. Temos de repensar a existência delas — argumenta Ortiz.
Policial sozinho não presta bom serviço para a comunidade e ainda corre risco. Limita-se a registrar ocorrência. Tem delegacias que nem precisariam existir. Temos de repensar a existência delas
ISAAC ORTIZ
Presidente da Ugeirm
Destes municípios com um policial, 57 têm até 5 mil habitantes. O local com maior população soma 12,7 mil. São, no total, 467 mil habitantes — o que representa um servidor para cada 5 mil. Ou seja, o agente atende 2,7 mil pessoas a mais do que a média estadual. As 93 cidades representam 28% das 324 que possuem delegacias no RS.
À frente da Associação dos Delegados de Polícia (Asdep), Cleiton Silvestre concorda que parte das delegacias foi criada sem obedecer critérios de criminalidade. Mas afirma que qualquer fechamento de unidades precisa ser analisado.
— Temos de avaliar. A criminalidade aumentou e o número de policiais diminuiu. Confiamos nesse estudo e no governo. Que dê andamento aos processos seletivos. Entendemos as dificuldades, mas não podemos deixar as comunidades sem seus agentes — diz.
A Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) é contra fechamento de DPs.
— Uma delegacia marca muito numa cidade. Seja em segurança, integração da comunidade e como referência — analisa o presidente, Antônio Cettolin.
“Só não caso e não batizo”
Entre fechar as portas ou trabalhar sozinho, um inspetor da Região Noroeste prefere manter o atendimento. Nos cinco anos em que atua na DP, encontrou formas de driblar a falta de colegas. Faz intimações por telefone e pede apoio aos agentes de outras cidades.
— Se vem uma senhora registrar um caso de Maria da Penha, a maioria não tem condições de ir até outra cidade. Vai ter de pegar ônibus. Vai deixar de registrar e ficar sofrendo agressões. É isso que o Estado vai oferecer para ela: continuar apanhando — avalia.
Em um município do Norte, um agente, com 25 anos de polícia, discorda. Apesar de reconhecer que as delegacias têm papel social, inclusive de orientação aos moradores, acredita que a regionalização seria a melhor saída.
— Só não caso e não batizo, o resto faço de tudo. A maioria não são crimes dolosos. Homicídio, olha, raramente dá um por ano. É mais fácil deslocar uma equipe do que manter uma delegacia.